A farinha de mandioca não é mais a principal atividade econômica de Santa Catarina, como acontecia nos séculos 18 e 19, mas o estado ainda guarda vestígios dos tempos em que só em Florianópolis havia mais de 400 engenhos. Famílias que vivem nas encostas da serra e no litoral mantêm viva a tradição em 64 engenhos que se espalham por Florianópolis, Bombinhas, Garopaba e Imbituba. Eles estão no auge da safra, trabalhando a todo vapor na colheita, que segundo a tradição é feita só nos meses sem “r”: maio, junho, julho e agosto.
Nesse período se realizam as farinhadas, forma antiga, coletiva e festiva de produção da farinha que envolve a comunidade. O Paladar esteve lá para conhecer a festa que faz da mandioca ingrediente soberano no prato e na história dos catarinenses.
A farinha catarinense tem personalidade própria: é fina, clara e possui mais amido que as farinhas de mandioca comuns. Resultado do método de produção tradicional.
A mandioca é prensada lentamente em estruturas de madeira talhadas à mão e movimentadas pela água ou por boi para ralar, prensar e fornear a raiz. O método preserva o amido e o polvilho, daí o nome farinha polvilhada. As características da farinha se devem não só à forma de preparo, mas também às variedades regionais da mandioca.
A festa
Faz 22 anos que o Engenho dos Andrade promove a Farinhada do Divino, que coincide com a festa religiosa do Divino Espírito Santo. No engenho de Celso e Catarina Gelsleuchter, em Angelina, a 80 quilômetros da capital, ainda estão ativas as engrenagens movidas por uma enorme roda d’água.
As peças foram feitas com madeira de canela-sassafrás há mais de 70 anos, quando a extração da árvore ainda era permitida. Algumas são originais, embora outras tenham sido substituídas ou mesmo adaptadas ao uso de eletricidade. “Tudo isso aqui já existia quando eu nasci”, conta Celso enquanto checa o funcionamento da máquina de sevar, onde a mandioca é triturada.
A festa da farinhada ali começa cedo. Familiares, amigos e convidados se juntam no engenho para celebrar a colheita e ajudar na produção, sob o olhar concentrado do Celso. Tudo acontece ao mesmo tempo: o trabalho artesanal de ralar, prensar, sevar e fornear a mandioca – que não é pouco –, a mesa posta para o café, a música ao vivo, as panelas no fogo, a prosa e as crianças molhando os pés na água fria do riacho que corta a propriedade.
Comida não falta. Pela manhã, tem rosca de polvilho, beiju, cuscuz e bolo de aipim. No almoço, arroz, feijão, galinha caipira ensopada, polenta, pirão e aipim cozido que derrete na boca igual manteiga. Esse tipo de farinha, pergunte a qualquer um ali, é perfeito para o pirão, que é um clássico na cozinha local, em variações como o de feijão, o de peixe e o d’água.
“Aqui usamos o aipim oriental. Tem o aipim pêssego também, que é bom para farinha”, conta Marcio, filho do casal. Mas o maior segredo mesmo é quem faz. “Se botar cinco tipos na minha frente, identifico a do meu pai só de olhar. Ele é fera no forno”, assegura Marcio. Seu Celso sabe se a intensidade do fogo está certa sentindo o calor dos grãos com a mão. “Tem que ir colocando a farinha aos poucos. Quanto mais livre ela trabalha, melhor”, explica.
História
A mandioca era largamente cultivada pelos guaranis, quando os açorianos desembarcaram na região, em 1748. Eles tentaram fazer pães com a farinha de mandioca (estavam acostumados ao manejo de moinho de vento usado para moer o trigo), e insistiram para obter farinha de mandioca fininha. “Queriam que ficasse bem fina, para panificar. O pão não deu certo, faltava o glúten, mas o gosto pela farinha fininha pegou”, conta o artista plástico Cláudio Agenor de Andrade, um dos herdeiros do Engenho dos Andrade, construído em 1860 na ilha de Florianópolis.
Tradição passo a passo
Colher e descascar. O aipim é colhido um dia antes do início do processo. A raiz é posta no raspador, um descascador de madeira que tira as partes mais grossas. O trabalho é concluído manualmente, com faca. Segue o passo a passo:
Sevar e prensar. Depois de lavada, a raiz passa pelo ralador (que na maioria dos engenhos funciona a motor). Dali ela vai para a prensa, onde é envolvida em náilon e acomodada em caixas quadradas de madeira (antes usavam-se cestas de palha). O segredo é espremer aos poucos para conservar o amido, que vai deixar a farinha polvilhada.
Sevar e fornear. A massa é sevada mais uma vez, para que os blocos sejam esfarelados. Aí é assada em tacho de cobre, mexida o tempo todo por um rodo de madeira. A arte nessa fase é equilibrar a velocidade das engrenagens e a temperatura. Se esquentar demais, a farinha aglutina e engrossa.
Descansar e peneirar. Quando alcança o ponto da torra, ela descansa em um recipiente da madeira, o cocho, e já está pronta para ser peneirada. Pouco mais de três quilos de aipim rendem um quilo de farinha.
Engenho é patrimônio
Muitos donos de engenho catarinenses estavam quase desistindo da produção artesanal, que enfrenta diversos tipos de problema, inclusive a legislação sanitária que restringe a comercialização, quando, há cerca de dez anos apareceram interessados em ajudar a preservar sua farinha.
Integrantes do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro), da Rede de produtores orgânicos Ecovida e do Slow Food Mata Atlântica se empenharam em preservar o conhecimento e a cultura dos engenhos e o trabalho resultou na criação, em 2010, da Rede Catarinense de Engenhos de Farinha, que reúne famílias, órgãos municipais, educadores e pesquisadores.
Nasceu aí um esforço conjunto de resgate e valorização, que envolveu diversas atividades, encontros e oficinas, além do documentário #EngenhoÉPatrimônio, um livro de receitas tradicionais e o mapeamento dos engenhos da região. Com o incentivo, alguns desses engenhos que estavam desativados voltaram a produzir.
Em maio deste ano, a rede encaminhou ao IPHAN um pedido para que os saberes e práticas associados aos engenhos do estado sejam reconhecidos como patrimônio cultural brasileiro. Quem prova a farinha fininha recém torrada não tem a menor dúvida: ela merece.
No frio farinha, no calor açúcar
No engenho de Celso e Catarina, a colheita do aipim se intercala com a da cana de açúcar. Entre o fim da primavera e o início do outono, da mesma estrutura usada para produzir farinha, sai o melado e o famoso açúcar mascavo, disputadíssimo por amigos e conhecidos. Primeiro a cana é moída e coada em tecido volta ao mundo, bem fino.
Depois vai para o forno, onde as impurezas sobem com a fervura e são retiradas com uma escumadeira. “O que diferencia o melado do açúcar é o ponto, tem que deixar ferver um pouco mais”, descreve dona Catarina. A massa é colocada em um saco de tela para escorrer e secar. É preciso mexer para que ela vá se desmanchando. Dizem que, depois de pronto, o açúcar parece que está vivo, porque dá para ver os grãos se acomodando.
(Estadão, 10/07/2019)
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