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Terrenos de Marinha: demarcação e aspectos contestáveis.

Foto: Facebook

Artigo de Andressa Talon Mendonça – Membro efetivo do IASC

O instituto jurídico terrenos de marinha, gerido pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, é alvo de inúmeros questionamentos e incompreensões por parte da população que possui imóveis em beiras de praia ou de rios navegáveis e que são fatalmente afetados pelo procedimento de discriminação e demarcação pois, ao catalogá-los como bens da União, constituindo-os como terrenos de marinha, a SPU retira o domínio pleno do então proprietário, transformando-o em mero ocupante ou foreiro e, por consequência, um eterno devedor da União.

Com efeito, as cobranças realizadas pela União em relação aos terrenos de marinha, denominadas “foro”, “taxa de ocupação” e “laudêmio”, não se confundem com a natureza de tributo: aquelas são caracterizadas como uma espécie de contraprestação a ser paga pelo denominado foreiro ou ocupante do intitulado imóvel em razão da sua posse ou eventual transferência onerosa. Situações que não excluem a obrigação desse mesmo sujeito passivo ao pagamento do respectivo imposto que, porventura, recaia sobre o mesmo fato gerador, como IPTU ou ITBI.

Criados no ano de 1818, com o propósito de assegurar às populações e à defesa nacional o livre acesso ao mar, os terrenos de marinha eram regidos por ordens régias emanadas de Portugal que determinavam que “tudo o que tocasse o mar e acrescesse sobre ele, seria da Coroa portuguesa”, ficando reservada a medida correspondente a 15 braças craveiras, contada da linha d´água para dentro e pela borda do mar, destinada ao serviço público.

A intenção, como visto, era a de preservar as áreas de domínio público, o que ainda hoje se mantêm quando a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 elenca um rol de bens considerados da União e, dentre eles, estão os terrenos de marinha e seus acrescidos.

Seguindo a lógica histórica, no ano de 1831, época do Brasil Império, o país enfrentava sérias dificuldades financeiras e, para resolver a crise que se instalava no território nacional, encontrou-se uma nova forma para arrecadar ainda mais rendas: sob o controle do Ministério da Fazenda, foi editada uma Lei Orçamentária que determinava a cobrança de foro em razão da utilização dos denominados terrenos de marinha. A partir de então, eles passaram a ser objetos dos chamados contratos de enfiteuse, consubstanciados na manutenção do domínio direto na posse do senhorio e o domínio útil na posse do particular, sob a condição do pagamento de foro, anualmente.

Visando melhor regulamentar o já exposto, no ano seguinte, em 1832, uma Instrução Normativa foi editada prevendo a alíquota que seria aplicada para a cobrança do referido foro e, concomitantemente, alterava a marcação dos terrenos de marinha, substituindo “borda do mar” para “Linha da Preamar Média de 1831” (LPM/1831), como a linha fundamental para a aferição dos terrenos de marinha em toda a costa brasileira, expressão essa que persiste até os dias atuais, por meio da vigência do Decreto-Lei n. 9.760/46 .

Contudo, a principal crítica relacionada ao trabalho desenvolvido pela Secretaria de Patrimônio da União e suas Gerências Regionais, refere-se à forma da realização dos trabalhos de discriminação e demarcação dos terrenos de marinha pelo litoral brasileiro, mormente quando não há o devido cumprimento do que está previsto em lei pois, para encontrar a linha demarcatória determinada há quase dois séculos, a SPU se utiliza de métodos próprios e critérios presumidos para estabelecer a contagem da linha da premar-média e, assim, definir as áreas que serão consideradas como bens da União. Mutatis mutandis, o que determina o indigitado Decreto-Lei, é que o marco inicial para a contagem dos 33 metros, requisito para efetuar a demarcação dos terrenos de marinha, é a linha que corresponde a da premar média do ano de 1831, e não a vegetação de restinga ou de jundu, e muito menos a preamar média do ano corrente à demarcação, formas essas corriqueiramente adotadas pela SPU, o que traduz evidente ilegalidade e produz insegurança jurídica.

Outro fator que merece destaque e que influencia significativamente os trabalhos de demarcação dos terrenos de marinha, é o afamado aumento do nível médio do mar, consequência do aquecimento global e do degelo das calotas polares, fator climático comprovado pela comunidade científica internacional e, portanto, uma realidade que deve ser levada em consideração, sobretudo em trabalhos que possuem como objeto o estudo do nível do mar.

Todavia, esse é outro fator igualmente ignorado pela SPU, que, como afirmado alhures, ao menos considera que a Linha da Preamar Média, na forma como determina a lei, possui um referencial fixo datado de 1831, o que significa que ele não se altera, ou seja, não acompanha o nível dos oceanos, levando a concluir que nesses quase dois séculos de criação do instituto terrenos de marinha, certamente o nível do mar se alterou e que esse é um fato que demanda um trabalho de demarcação ainda mais apurado, por meio da realização da chamada “retrovisão do nível médio do mar”, até o referido ano.

Felizmente este trabalho foi realizado, não pela SPU, mas pelo engenheiro cartógrafo Obede Pereira de Lima, que abordou, em tese de doutorado, apresentado em 2002 ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o tema: “Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 – LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos.”

Por meio de estudos e pesquisas que buscaram recursos técnicos nas ciências matemáticas, físicas e computacionais, o autor da tese conseguiu demonstrar que é possível a localização geodésica da LPM/1831 com precisão e segurança, sem a necessidade de utilização de outros critérios senão os por ele testados e comprovados.

Tendo como objeto de estudo a Praia da Enseada, no município de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, Obede Pereira de Lima se utilizou de diversas áreas do conhecimento para o desenvolvimento da pesquisa, no intuito de aferir a localização geodésica da Linha da Preamar Média, referente ao ano de 1831. Dentre elas, destaca-se a Hidrologia, por meio da instalação de uma estação maregráfica no local do estudo; a Geodésia, para a determinação das linhas de costa; a Informática para o processamento dos dados colhidos com a aplicação de uma fórmula matemática que determina a retrovisão harmônica das marés para o ano de 1831; a Topografia a fim de determinar a Linha da Preamar Média na área de estudo e, por fim, a Cartografia, na elaboração de mapas com os respectivos referenciais apurados no decorrer da pesquisa.

Ao final do trabalho, o autor elencou importantes recomendações a serem atendidas com base na pesquisa e no estudo realizado. De acordo com o verificado, o pesquisador enfatizou que, “considerando o decurso do tempo e a influência dos fatores climáticos, as linhas da preamar média do ano de 1831 podem estar, na verdade, na sua maioria, debaixo d´água ao longo da costa brasileira.” O que, por consequência, coloca os terrenos de marinha, em tempos de preamar, quase em sua totalidade submersos, quando não em área de praia, esta, um bem de uso comum do povo, desnaturalizando a sua natureza jurídica.

Por esses e outros motivos, o pesquisador recomendou que a SPU adote a metodologia por ele desenvolvida, possibilitando a mudança nos critérios utilizados nos trabalhos que envolvem a demarcação dos terrenos de marinha e acrescidos em todo o país e, com isso, reveja todos os seus processos demarcatórios por meio de um novo mapeamento cadastral das parcelas imobiliárias, a fim de constatar e retificar prontamente possíveis irregularidades cometidas, ou até mesmo restituir de ofício aos legítimos proprietários que tiveram seus imóveis demarcados de forma contrária aos ditames legais.

Ignorando a relevante informação, a SPU atualmente trabalha no chamado Plano Nacional de Caracterização (PNC), projeto desenvolvido no âmbito do Programa de Modernização da Gestão do Patrimônio Imobiliário da União (PMG/SPU), definido como um instrumento de gestão para acompanhamento de todas as ações de demarcação realizadas no Brasil, definindo diretrizes, ações e metas, no sentido de orientar a atuação integrada da SPU em todos os estados, com o objetivo de concluir os trabalhos de demarcação dos terremos de marinha (utilizando-se de padrões e critérios próprios) de toda a costa brasileira, até o ano de 2020.

Para combater esse avanço, normas e princípios constitucionais como o direito de propriedade, à moradia digna, cumprimento do princípio da legalidade e da segurança jurídica são invocados por aqueles que se sentem prejudicados pelas ações de demarcação realizadas pela SPU, corroborando seus protestos sob alegações de enriquecimento ilícito e abuso de poder por parte da administração pública, que insiste na manutenção desse instrumento centenário para cobrar contraprestações daqueles que se utilizam de áreas demarcadas.

Em contrapartida, a SPU alega que este não é um instituto meramente arrecadatório, mas que também cumpre sua função social e ambiental pois provê a preservação de áreas, destinando-as a órgãos competentes, como o Instituto Chico Mendes e promove a ordenação de uso racional e sustentável dos recursos naturais nas orlas marítimas e fluviais, por meio da emissão dos chamados Termos de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) às comunidades ribeirinhas, o que também, segundo a SPU, contribui para a solução dos conflitos fundiários no país.

Todavia, é bom que se consigne que a preocupação com o desenvolvimento sustentável há muito já foi discutida no país, o que culminou na edição de Leis que garantem a preservação ambiental, como o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC), editado em 1988 e que tem por escopo garantir a preservação da zona costeira do país, especialmente porque ali se encontram as praias, os manguezais e os terrenos de marinha. Esta Lei também recebeu reforço com a edição de outras tantas leis ambientais brasileiras, consideradas como as melhores do mundo – ainda que para seu efetivo cumprimento, falte fiscalização.

Os argumentos defensivos da SPU também repousam nas alterações promovidas por meio da publicação de duas leis editadas no ano de 2015: a de número 13.139 e a de número 13.240 , que trouxeram significativas mudanças em diversas questões relacionadas aos terrenos de marinha, como a exclusão das benfeitorias no pagamento de ocupação e laudêmio, remissão de dívidas, parcelamento de débito, maior possibilidade de aforamento àqueles que estão em situação precária ou irregular e até mesmo a alienação de imóveis localizados nas chamadas “áreas urbanas consolidadas”, este, com o intuito de levantar recursos e de se desfazer de imóveis que não são mais tão interessantes ao seu domínio.

Porém, se considerar que o brado maior ainda é a forma como a SPU demarca os terrenos de marinha e que acabam, invariavelmente, atingindo áreas que jamais deveriam ser consideradas de patrimônio federal, não seria razoável resolver uma situação – considerada grave porque atinge importantes preceitos fundamentais – com a edição de leis, que mais parecem soluções paliativas, aplicadas a um problema que precisa ser remediado de forma mais enfática.

Nessa esteira, em tramitação no Congresso Nacional, o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) de número 53, é o que se encontra mais avançado em âmbito legislativo e o que traduz maior esperança aqueles que enxergam no instituto terrenos de marinha um verdadeiro retrocesso.

A intenção do legislador, por meio dessa PEC, é de extinguir completamente os terrenos de marinha do país, a partir da eliminação de duas previsões legais: o inciso VII do artigo 20 da Constituição da República, que elenca os terrenos de marinha como um bem da União; e o § 3º do artigo 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que determina que a enfiteuse continua sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos.

Feito isso, segundo o Projeto, tornar-se-ia possível dar a devida destinação aos imóveis de acordo com sua situação atual. Ou seja, aqueles afetados a serviços públicos federais, estaduais ou municipais, seriam a esses respectivos entes destinados, e aqueles na posse de particulares, foreiros ou ocupantes, seriam a eles integralmente entregues, transformando-os em legítimos proprietários, sem a necessidade de pagamento para tanto.

Embora muitos projetos acabem arquivados no fim das legislaturas, quando eventualmente seus autores não são reeleitos, a PEC 53, proposta em 2007, continua em ampla tramitação no Senado Federal, o que faz com que os desafios atualmente sejam outros: além de rebater eventuais objeções, o enfrentamento maior ainda é o legislador tentar regularizar um instituto com características complexas cujos problemas não são afetos – e até desconhecidos – de outros Estados da federação, o que gera um ambiente de desinteresse na discussão da matéria e a consequente falta de quórum para sua aprovação.

Não obstante, ainda que o ambiente para solução desse problema seja, como visto, estritamente político, é o único meio capaz de trazer alguma mudança nesse cenário. Afinal, enquanto houver previsão legal autorizando a aplicação do instituto da enfiteuse aos terrenos de marinha, declarados constitucionalmente como bens da União, a SPU continuará legitimada a seguir realizando suas demarcações, ainda que de forma altamente questionável.

(IASC, 11/03/2019)

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