Foi no Carnaval, no início do século 20, que os negros, ex-escravos, desceram o morro em Florianópolis. Primeiro participaram de blocos, nunca das Sociedades Carnavalescas, nas quais sua presença era proibida. Mas conquistaram espaço, efetivamente, a partir da criação das escolas de samba da cidade, explicou a socióloga e pesquisadora de Carnaval Cristiana Tramonte. Tudo começou no Morro da Caixa, em reuniões entre marinheiros cariocas radicados na Capital catarinense e moradores da região. Ali nasceu a Protegidos da Princesa em 1948 e, mais tarde, em 1955, a Embaixada Copa Lord. E esse é só o início de uma história de alegrias e tristezas, que já arrastou multidões pela praça XV de Novembro, surpreendeu o público na avenida Paulo Fontes e deslumbrou moradores e turistas na passarela do samba Nego Quirido, este ano sem vida.
O escrivão de polícia aposentado, hoje membro da velha guarda da Protegidos da Princesa, Mário Noberto da Silva, 77 anos, já comandou a abre alas da primeira escola de samba da Ilha. “Só entrava negros, fortes e com mais de 1,85 metros como eu”, lembrou o Marinho, como é conhecido. “Era para dar estampa”, concluiu. O fato é que naquela época o desfile era “eminentemente negro”, disse Edu Aguiar, escritor de enredos e sambas-enredo da Copa Lord há 32 anos, 30 deles em parceria com Celinho. Somente na década de 1970 é que os brancos passaram a ter maior representatividade nas escolas de samba.
A história de Florianópolis estava conectada com a história do Brasil. Em 1888 a escravatura foi abolida, na teoria. Na prática, ex-escravos eram excluídos da vida social das cidades. No entanto, no governo de Getúlio Vargas o Carnaval foi incluído no calendário oficial de comemorações nacionais e o cenário mudou para os negros marginalizados, observou Cristiana. “O carnaval deles era tão mais ritmado que os outros foram sumindo”, relatou a pesquisadora. “Eles viraram o jogo através das questões culturais.”
Festa na Praça XV
O calor humano tomava conta da Praça XV de Novembro. Por onde a primeira escola de samba passava, com cerca de 300 componentes, o público de dez mil pessoas vibrava e quase invadia a pista. Somente cordões de segurança separavam quem fazia o Carnaval de quem o assistia.
Os desfiles eram mais criativos e até mais ingênuos. Não eram usados carros alegóricos, que surgiram no desfile das escolas só nos anos 1980. “No máximo tinham tripés com estandarte ou bandeira da escola”, disse Marinho. Até meados de 1960, os sambas-enredo eram adaptações de sambas cariocas.
No mesmo dia em que as escolas desfilavam, se exibia ao público também as Sociedades Carnavalescas, com seus carros de mutação, e os blocos de sujo. No fim das apresentações, se misturavam e continuavam a festa. “Ficava uma coisa meio apoteótica”, descreveu Edu Aguiar.
Depois de surgir a Embaixada Copa Lord, em 1954, o que se tornou memorável na folia do entorno da figueira foram brigas no fim da competição, apontou Marinho, que já presidiu, assim como seus dois irmãos, a escola da qual tanto se orgulha. “Depois que saia o resultado, no mesmo dia, era homem brigando, mulher brigando. O perdedor nunca aceitava.”
Da Paulo Fontes a Nego Quirido
Até 1986, surgiram mais sete escolas de samba, entre elas a Unidos da Coloninha e Consulado, que permanecem no Carnaval até os tempos atuais. Mas já em 1982, as imediações da Catedral já não comportavam tanta gente. A avenida Paulo Fontes passou a ser o palco para os desfiles.
Carnaval ganhou arquibancadas, decoração a prova da chuva e do vento sul. Carros alegóricos davam corpo aos desfiles até então organizados em ranchos, ou seja, pequena escola de samba com representatividade comunitária. Os enredos eram mais elaborados, mas os mestres-salas e porta-bandeiras continuavam fazendo uma parada para os cumprimentos com políticos da época. “O prefeito descia e apertava a mão deles. Isso era comum”, lembrou Edu Aguiar.
Neste momento também surgiram os quesitos para avaliação das escolas. Não havia parâmetro de avaliação fixa na Praça XV. Na Paulo Fontes, foram definidos dez quesitos, número que caiu para nove quando os desfiles passaram a ser realizados na passarela do samba Nego Quirido, a partir de 1987. Lá, a pista é mais larga e distante do público. Edu Aguiar lembrou que este foi o cenário também para o surgimento da figura do diretor de harmonia, que tornou o desfile mais estruturado. Antes, era comum uma ala entrar na outra.
O Carnaval cresceu e, em contrapartida, sofreu certa “caricaturização”. “É o modelo. É a disputa. O que importa são os jurados e eles vêm do Rio de Janeiro”, criticou Edu. Em 2008, mais uma escola de samba passou a compor o time do grupo especial, a União da Ilha da Magia. Atualmente, quatro escolas compõem o grupo de acesso.
O fenômeno Consulado
A escola de samba Consulado do Samba surgiu em 1986, ano a partir do qual o Carnaval de Florianópolis começou a passar por uma grande transformação. Cariocas que vieram trabalhar na Eletrosul, em Florianópolis, saudosos do samba do Rio, formaram um bloco e, mais tarde, como escola de samba entraram na Nego Quirido para vencer. “Era uma concorrência superior”, afirmou Edu Aguiar, que conhece como poucos a história do Carnaval da Ilha.
Segundo ele, a escola já iniciou com estrutura de empresa privada e angariando recursos por meio de política de incentivo a cultura da época. Nas outras, a administração era familiar. “A Consulado inflacionou a forma de se fazer o Carnaval”, disse Edu. A cobrança sobre todas as escolas se tornou maior e para vencer a novata era preciso mais investimentos. “Desde então o Carnaval acabava com as escolas no vermelho.” Hoje, a escola que liderou uma transformação no carnaval florianopolitano também tem “problemas familiares” e tem dívidas, de acordo com Edu.
Os inesquecíveis limões-de-cheiro
Desde que a folia que antecede a Quaresma era chamada de entrudo, ela provoca polêmica. Nos anos 1850, a festa popular da Capital catarinense já sofria “regulamentações” para que as brincadeiras da época não ferissem a “honra” de pessoas importantes da sociedade. O motivo para tanto foram os limões-de-cheiro.
A brincadeira consistia em produzir manualmente o artefato (membrana de cera com líquido dentro, podendo ser água com perfume ou outros menos agradáveis) e jogar nos outros. “A cena era sempre impagável: senhoritas e rapazes munidos de um grande arsenal tocaiavam alguma solene figura da cidade: o juiz, o contador, o presidente, o presidente da Câmara. E zás! – banho de limões na vítima. O enfatiotado logo perdia a cartola e a compostura.”, escreveu Átila Alcides Ramos, em seu livro “Carnaval da Ilha” (1997, ed. Papa-Livro).
(ND, 20/01/2013)
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