Quem recebe uma caixa com chocolates, um cartão de papel reciclado ou uma cesta de Páscoa, muitas vezes não imagina como esses produtos foram feitos, nem quem realizou o trabalho. Em tempos de sustentabilidade o Instituto da Terra desenvolve um projeto sustentável e social com a produção de materiais ecologicamente corretos. O trabalho dos colaboradores vai das 7h às 17h com uma hora de intervalo ao meio dia. Porém, após o expediente eles continuam na fábrica, dormem e vivem por lá. A operação toda ocorre na galeria D do presídio masculino de Florianópolis.
O projeto Cidadania em Cadeia para o Direito do Futuro funciona há 14 anos na penitenciária com o objetivo de reduzir a criminalidade, dar oportunidade e ressocializar os detentos. Hoje a produção conta com quatro coordenadores que vivem na oficina e quando o pedido é grande, outros detentos auxiliam no trabalho. Eles participam de todo o processo desde a criação até o produto final.
No início era feito apenas a produção de papel, hoje além do papel eles trabalham com cartonagem, serigrafia, costura e marcenaria. Entre os materiais produzidos e montados na oficina estão sacolas retornáveis, brindes, blocos, canetas e até abajur, este último por meio de uma parceria com o designer Diogo Rinaldi. A matéria prima vem de papel reciclado, bambu, plástico biodegradável, garrafas pet, retalhos de madeira e tecido.
Na penitenciaria da Capital há 310 homens detidos. Destes, 60 estão trabalhando em três oficinas diferentes e há mais de 50 aguardando por uma oportunidade. A partir de três meses de reclusão o detento pode solicitar trabalho, a iniciativa precisa partir deles. Não há distinção de crimes. O recrutamento e a seleção dos detentos são feitos respeitando os quesitos de segurança e disciplina. A prioridade é para os presidiários com mais tempo de cumprimento de pena, melhor comportamento e que tenham a família em situação de risco. Eles recebem R$466,50 entregues diretamente à família e a cada três dias de trabalho, diminui um na pena.
Vidas recicladas
O ambiente é tranquilo, limpo e organizado. As únicas coisas que fazem lembrar que o local é uma prisão são as grades na janela, de onde só é possível avistar o céu. A rivalidade se limita aos times do coração, Avaí e Figueirense. Na própria oficina os detentos têm um quarto com quatro camas, cozinha e banheiro. Assim como o papel que trabalham, muitos ali têm suas vidas recicladas, renovadas.
Todos os coordenadores da oficina foram presos por tráfico de drogas, alguns deles mais de uma vez. Lourival Wener, 55, trabalhava na costura da cúpula de um abajur, feita de tecido. Ele contou que já foi bancário e trabalhou no comércio durante muito tempo, mas acabou se envolvendo com tráfico e foi pego com cocaína. Pouco mais de dois anos preso ele garante que gosta do que faz, mas quer logo sair dali. “Às vezes a gente recebe um pedido e se pergunta: Será que eu consigo? Quando vai ver, já fez, está pronto. Aqui é o melhor lugar da cadeia. Eu gosto daqui e do trabalho, mas gosto mais da rua”, disse Wener.
O agente penitenciário Adilson Maurino da Silva, 49, trabalha há 25 anos no presídio e há 14 cuida das oficinas. Ele anda tranquilamente pela área, não usa nenhum tipo de arma nem proteção e ainda assim se sente seguro. Nunca teve problema, a conversa com os detentos flui naturalmente, se falam como amigos. Silva acredita no trabalho e vê ali uma oportunidade de mudança: “O trabalho aumenta a autoestima deles, a dignidade e respeito por si mesmos. Muitas vezes eles entram aqui de cabeça baixa, desacreditados, mas saem cheios de ideias. Muitos pensam até em montar seu próprio negócio”.
As coisas simples e que muitas vezes passam despercebidas pelo dia a dia fazem toda a diferença para eles. Jair Gevard, 54, está preso há quatro anos e conta entusiasmado que na oficina pode comer de garfo e faca sem problema. O detento diz que é difícil voltar para a rua e retomar a vida porque não consegue emprego facilmente e acaba cercado pelas mesmas influências. “A gente tem que aprender a dizer não, as pessoas vem te procurar, mesmo que tu digas que não mexe mais com isso. Vem um, outro, e isso vai influenciando”, contou Gevard.
O resultado do projeto
Eder Luis de Oliveira, 43, tem quatro filhos, é técnico de enfermagem e tinha uma oficina de moto, mas acabou caindo no crime. Para ele o trabalho é a única maneira de não pensar em bobagens. “Na cadeia não tem nada que se aproveite. Quando a gente entra só sabe do nosso crime, mas acaba convivendo com outros e aprende coisas que não deveria. Se você trabalha a cabeça muda e você quer sair dessa vida”, relatou.
Oliveira tem uma visão empreendedora e é um dos mais entusiasmados da turma. Ele conta que está estudando sobre bambus e quer montar um negócio. Ele saiu do regime fechado há pouco mais de um mês e o aprendizado foi além da ressocialiazação e da ocupação do tempo ocioso. “Antes, quando eu recebia um presente, eu jogava a caixa fora. Hoje não faço mais isso porque eu participo do processo dessa caixa, sei como funciona e não desperdiço. A gente aprende a ser responsável assim também”, revelou Oliveira.
Assalto em Ratones deu origem ao projeto
A idealizadora e coordenadora do projeto, Zuleica Nunes da Silva, é arte educadora, começou a carreira como artista plástica em Porto Alegre e foi professora da UnB (Universidade de Brasília). Ela conta que tudo começou no final dos anos 90 quando a fábrica de Zuleica, que já trabalhava com material reciclado, instalada no bairro Ratones foi assaltada. Chegou um homem com um facão pedindo dólares. A polícia sugeriu que ela se mudasse do bairro por causa da violência e assim fez.
Sem se dar conta, montou a nova loja em frente à penitenciária, na Trindade. Mas o espaço não era suficiente para a produção, então Zuleica resolveu bater na porta da penitenciária e sugerir que a fábrica funcionasse ali, gerando ocupação para os detentos. Três dias depois o projeto foi aprovado e está ali até hoje. “Queria provar que é possível fazer diferente, que eu acredito no ser humano. Daria tudo errado ou tudo certo e, ainda bem, deu muito certo”, contou Zuleica.
Quando o projeto começou surgiram obstáculos, clientes deixaram de fazer pedidos depois que a fábrica passou a operar na penitenciária. Zuleica conta que alguns justificavam a desistência dizendo que se houvesse rebelião não receberiam o pedido no prazo. Porém a coordenadora garante que todas as vezes que houve rebelião a oficina continuou funcionando normalmente. Apesar das rejeições ela não desistiu. “Eles são profissionais excelentes e quando saírem daqui estão preparados para trabalhar em qualquer gráfica. Aqui me preocupo muito mais com o trabalho na mente deles do que com o que eles produzem com as mãos”, ressaltou.
Conheça mais do projeto no site www.institutodaterra.org.br e pelo telefone de contato: (48) 4105-2800.
(ND, 05/04/2012)
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