Comer é ato político. A lógica é simples: ao escolher o alimento, escolhe-se o modelo de país desejado. E apesar de o mercado estar marcado pela alienação do consumidor, há pessoas tramando na cozinha verdadeiras revoluções.
Meio-dia. Quarenta convidados entram no salão ao som de Rancho de Amor à Ilha. São servidos drinques de licor de jabuticaba, limão siciliano e a boa cachaça catarinense. É para abrir o apetite. A professora Fabiana Mortimer Amaral, 43 anos, coordenadora do Núcleo de Estudos em Gastronomia do IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina), os recebe. Há dois anos, ela organiza no restaurante-escola da instituição um almoço para produtores, chefs e profissionais da agroecologia. O propósito é construir pontes.
O dia do evento é o mesmo escolhido pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para representar a gastronomia sustentável, 18 de junho. Cada uma das oito mesas é composta estrategicamente.
Numa delas está o produtor Glaico José Sell, a assessora técnica do Centro Vianei de Educação Popular, Carolina Couto Waltrich, e a gerente-executiva da Abrasel/SC (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) Andreia Alberti. Ao lado o vereador Marquito (PSOL) e atrás a reitora Maria Clara Kaschny Schneider, outros 16 agricultores, cinco chefs e empresários do setor.
Como não há comunhão mais rica que aquela celebrada à mesa, as conversas são induzidas por deliciosos pratos. Bruschetta de abobrinha, com pão de goiaba serrana, pesto de pinhão, queijo serrano e mel de bracatinga. Entrada quente de creme de pinhão com inhame e chips, seguido pelo prato principal, mousseline de abóbora com uvaia, acompanhado de tropeiro de pinhão, chutney de goiaba serrana, espuma de queijo serrano e frescal e filé ou berinjela marinada no missô.
Os convidados conversam vivamente sobre projetos agroecológicos no Estado, sobre plantios, restaurantes engajados, suas experiências, degustam vinhos e espumantes da Serra catarinense e trocam contatos. Ponte edificada e selada com a majestosa sobremesa outonal da professora do IFSC Alice Nogueira Novaes Southgate. Pedaços de compota de goiaba serrana, pequenos merengues com pó da casca, gel da calda com quentão, tubinhos crocantes recheados com queijo cremoso, espuma sólida de chocolate e especiarias, e sorvete de erva-mate com farofa de pinhão.
Nova geração na linha de frente
O clima é de encantamento com o cardápio. Sorvete de erva-mate com farofa de pinhão? Não há limite para a criatividade das chefs. E elas não dão trégua. Às 14h30, o almoço é encerrado com uma infusão com casca da goiaba serrana, macela e erva-mate e macarons de pinhão com pâte de goiaba serrana pra Maria Antonieta nenhuma colocar defeito.
Na linha de frente, apresentam-se os alunos. Incansáveis no preparo dos pratos e na organização do evento são aplaudidos de pé. Ali está a nova geração capaz de fazer do alimento a melhor bandeira.
A rica cozinha local
A cozinha catarinense é rica em influências. Retrato das colonizações. A culinária açoriana, ao longo do litoral, é baseada em peixes e frutos do mar. No interior, nos núcleos de imigração germânica, como o Caminho dos Príncipes e o Vale Europeu, o forte são as carnes suínas e cervejarias. Enquanto as terras habitadas no passado por italianos são conhecidas pelas cantinas e vinhedos.
Os alambiques concentram-se na Grande Florianópolis e na Costa Verde e Mar. Há cidades influenciadas pela ascendência polonesa, ucraniana, austríaca, húngara e holandesa. Sem contar a comida tropeira, dos antigos gaúchos. Mas qual são as apostas atuais da gastronomia catarinense?
Para a professora Fabiana Amaral é a biodiversidade da Mata Atlântica. “No Brasil só restou 12% da Mata Atlântica. Em Santa Catarina, nosso maior reduto está em Bom Jardim da Serra e São Joaquim. Se queremos salvar essa rica biodiversidade temos que agregar valores e descobrir as potencialidades da floresta ou vamos virar o país da monocultura”, diz.
Alimentos para incrementar sabor e valor nutricional à mesa dos catarinenses não faltam, como goiaba serrana, cogumelos porcini, pinhão, pitanga, araçá, uvaia, pupunha, pitanga e jabuticaba. Falta apenas o que Fabiana, colegas, alunos e parceiros tentam construir: as pontes.
As edificadas no ano passado continuam firmes. Dois chefs de referência no Estado, Narbal Côrrea e Fábio Coelho, incluíram produtos da Mata Atlântica catarinense em seus cardápios, após participarem do primeiro almoço promovido pelo Núcleo de Estudos em Gastronomia.
O Brasil colocado à mesa
O Brasil vive uma severa crise provocada pela má distribuição de terras. Os monocultores que plantam basicamente soja e milho para commodities ou para alimentar animais de abatedouros têm 75% das terras e empregam 25% dos trabalhadores do campo, segundo o IBGE. A maior parte do serviço é feito por máquinas.
Na inversão proporcional, os agricultores familiares têm apenas 25% das terras, mas empregam 75% das pessoas. Uma situação que complica ainda mais, se os agricultores forem adeptos da agroecologia, aquela agricultura ambientalmente sustentável, ecologicamente eficiente e socialmente justa.
O contraponto a um país que já degradou terras equivalentes a duas Franças, que é o campeão do mundo em uso de agrotóxicos com cerca de um bilhão de toneladas despejadas por ano, que desperdiça anualmente três trilhões de litros de água doce, que é acusado internacionalmente de exterminar indígenas, que já saiu – mas está perto de voltar – para o mapa da fome direto para o da obesidade. Doença associada pelo IBGE ao consumo de ultraprocessados: combinações químicas sedutoras que imitam alimentos com uso indiscriminado de sal, gordura e açúcar. Por estas razões, o ato de cozinhar – sequestrado pela indústria dos falsos alimentos-, se tornou vital para fortalecer a saúde da população e do planeta.
Movimento prioriza o alimento
Antes de ser servido o almoço, Giselle Miotto, educadora no Slow Food Brasil, perguntou aos convidados do almoço no IFSC quantas pessoas faziam parte do movimento. Muitas mãos foram erguidas. A rede internacional cresce no Brasil, tem 60 núcleos no país e é ativa em Santa Catarina. A intenção é buscar transparência na cadeia produtiva, valorização dos produtores e conscientização dos consumidores.
O Slow Food surgiu em 1986, quando o italiano Carlo Petrini soube que o primeiro restaurante do McDonald’s seria instalado em Roma. No dia da inauguração, o fundador se reuniu com alguns amigos em frente à loja para cozinhar uma tradicional massa italiana. Para ele, ali estava o alimento de verdade, coerente com a cultura alimentar da região.
Os grupos do Slow Food trabalham em três frentes. A proteção da biodiversidade alimentar; a consciência na hora das compras, que vai desde valorizar produtos locais e sazonais até a redução do consumo de plástico; e o encurtamento das cadeias produtivas, para que o cliente aprenda a consumir direto do produtor, sem atravessadores. Atitudes vistas como estratégicas para evitar o desperdício de alimentos no Brasil, que já ultrapassa 41 mil toneladas por ano, de acordo com a instituição de pesquisa internacional WRI (World Resources Institute). A comida posta no lixo seria capaz de alimentar cem milhões de pessoas, a metade da população brasileira. Comer é um ato político.
(ND, 24/06/2018)
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