Da Coluna de Carlos Damião (ND, 03/12/2017)
Há gente que passa mais de duas horas por dia nos congestionamentos que se formam para a travessia Continente-Ilha, pela manhã, e Ilha-Continente, no período da tarde. São duas horas perdidas, que poderiam ser melhor aproveitadas em casa, no trabalho, na escola ou na faculdade. E não são poucas as pessoas que vivem essa situação no cotidiano.
Levantamentos oficiais de 2014 indicam que mais de 170 mil veículos/dia utilizam as pontes Pedro Ivo Campos e Colombo Salles. Há projeções de que esse número possa chegar a 300 mil em 2020. Imagine-se a situação daqui a dois anos, quando percebemos na atualidade o colapso urbano que alcança Florianópolis, São José, Biguaçu e Palhoça.
As soluções para aliviar essa carga parecem distantes. Enquetes jornalísticas realizadas com motoristas indicam sempre alternativas que parecem fáceis, como a construção de uma quarta ponte ou de um túnel Ilha-Continente. Poucos se referem ao transporte coletivo. Quando falam, criticam o serviço (inclusive a demora, o que é irônico, diante das filas que os ônibus também enfrentam) ou alegam que precisam do automóvel para fazer suas voltas, levar e pegar os filhos nos colégios etc. Raras vezes mencionam o transporte marítimo como opção para escapar da travessia rodoviária.
Os estudos do Plamus (Plano de Mobilidade Urbana Sustentável da Grande Florianópolis) apontam sempre a saída do transporte público eficiente e de qualidade – inclusive os BRTs (Bus Rapid Transit) – como a mais adequada para resolver a torturante questão da mobilidade. O Plamus foi o primeiro plano do gênero elaborado com critérios científicos, embasado em pesquisas realizadas durante o ano de 2014, com participação técnica multidisciplinar. Mas sua orientação prática ainda está distante, porque as prefeituras da região não têm recursos financeiros para desenvolver melhorias no sistema viário e privilegiar o tráfego dos ônibus.
Trecho do relatório do Plamus, debatido no fim de 2014 em oficinas especiais, com a participação de autoridades e técnicos:
“O diagnóstico da equipe técnica do Plamus mostra que o eixo de desenvolvimento Leste-Oeste, focado no Centro da Ilha de Santa Catarina, está saturado. Segundo os especialistas do estudo, é preciso fomentar o desenvolvimento da região continental de uma forma bem definida: orientado pelo transporte público eficiente e de qualidade. Construir uma quarta ponte conectando a Ilha ao continente pode ou não, segundo o corpo técnico, ajudar a mobilidade da região, mas certamente não solucionará as questões de engarrafamento em longo prazo”.
Curiosamente, e recorrendo à história, a professora e historiadora Djanira Martins de Andrade escrevia em seu livro “Hercílio Luz: uma Ponte Integrando Santa Catarina” (Edufsc), de 1981: “Um fator importante no desenvolvimento urbano da Grande Florianópolis foi a evolução do transporte motorizado, do ônibus e do automóvel, principalmente do primeiro. (…) O que antes se fazia por via marítima passou a ser feito utilizando-se o transporte rodoviário”.
Djanira toca no ponto crucial da mobilidade, que foi a inauguração da Hercílio Luz em 1926 e o posterior incremento do tráfego de automóveis, caminhões e ônibus na travessia Ilha-Continente. O abandono do transporte marítimo foi quase que automático, da década de 1930 em diante. E a motorização dos moradores cada vez maior, conforme o tempo avançou. Em 1960 passavam 4.939 veículos/dia em média. Quatro anos depois, esse número subiu para 8.748/dia. Em 1967, passou para 12.234. Em 1982, ano da interdição da ponte, eram 27.345 veículos/dia (43,8% do tráfego total da travessia).
Região motorizada
No estudo de Djanira Martins de Andrade, percebe-se o quanto a Ponte Hercílio Luz foi a indutora do desenvolvimento de Florianópolis, desarticulando a economia das cidades vizinhas, que funcionaram como entrepostos comerciais durante pelo menos dois séculos. De São José, Palhoça, Biguaçu e Tijucas partiam as embarcações que abasteciam a Ilha de Santa Catarina com gêneros alimentícios. A ponte acabou com o movimento de barcos e desestabilizou a economia dos municípios próximos. O que era uma região de grande movimentação marítima, passou a ser uma região motorizada – dependente, em primeiro lugar, da Hercílio Luz e, depois, da Colombo Salles e da Pedro Ivo.
A Hercílio Luz deve ser reabilitada ao tráfego no fim de 2018, mas, por si, pode representar não mais do que 20% da solução para a mobilidade. Em paralelo, repousam nas gavetas da burocracia as propostas para reativação do transporte marítimo, quase 90 anos depois que essa alternativa econômica e social perdeu sua importância. A última notícia sobre a implantação desse modal foi publicada pelo ND em abril deste ano – e ainda era um projeto.
Do alto das pontes, os motoristas trancados em seus automóveis contemplam as baías Norte e Sul quase vazias de barcos. Um cenário muito diferente do que já tivemos, quando éramos uma região voltada para o mar.
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