O preço de um pedaço de terra em Florianópolis assusta o trabalhador médio. A construção civil lamenta a estagnação do mercado e o que chama de “entraves ambientais”. A população cresce acima da média nacional. Enquanto o turismo se consolida como vocação – a magia do lugar atrai milhares a cada temporada -, cada metro quadrado é disputado palmo a palmo. As administrações destacam o bom IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Mas a fila nas pontes já não anda nos horários de pico. E lá se vai mais de uma década de discussões de um Plano Diretor que não sai do papel. O caos urbano contrasta com um passado não tão distante. Em 1970, por exemplo, o censo do IBGE contabilizou 5.984 toneladas de mandioca, 53.390 cachos de banana, 55.640 galinhas e mais de um milhão de litros de leite de vaca. Tudo produzido numa paisagem agropecuária já não mais visível. Uma época em que nem todo mundo tinha título sobre as próprias terras.
No meio deste intervalo de tempo que transformou a rotina rural da cidade em destino turístico e moldou a geografia dos bairros está o extinto Irasc (Instituto da Reforma Agrária de Santa Catarina). Foram 15 anos de forte atuação em um programa que deveria promover a reforma agrária e combater grandes latifúndios. No entanto, ao que tudo indica, boa parte das 980 áreas repassadas pelo órgão foi para pessoas que não se enquadrariam nos critérios exigidos para fornecimento dos títulos. Segundo documentos anexados à ação civil pública movida pelo MPF (Ministério Público Federal), as terras da reforma agrária acabaram servindo à especulação imobiliária, ampliando patrimônio de noradores e empresas ou distribuídas entre pessoas “influentes” dentro do órgão que concedia os títulos. A lista de beneficiados mostra inclusive funcionários do Irasc como beneficiários.
Em 15 anos de atuação, entre 1962 e 1977, o Irasc assumiu a tarefa de identificar e distribuir as terras devolutas do Estado “com atenção especial a áreas devolutas posseadas por agricultores”, conforme diz o texto da lei 2.939/1961 que criou o órgão. Nesse período, foram 16.055 glebas de terras transferidas em todo o Estado, sendo a maior parte no litoral. Em Florianópolis foram concedidos 980 títulos que regularizariam a posse de 30,6 km² somente pelo Irasc. Outros 421 títulos foram emitidos após a extinção do órgão, através da Colecate (Coordenação de Legitimação e Cadastramento de Terras Devolutas), sendo 25 deles na Capital.
Os documentos do Irasc descansaram durante anos nas gavetas do arquivo do governo do Estado sem que ninguém questionasse o possível esquema para burlar as exigências da legislação que criou o instituto em 1961. Durante anos, o órgão funcionou praticamente como um cartório de títulos, concedendo áreas nos recantos da Ilha ou em qualquer lugar do Estado. Glebas imensas foram repassadas a pessoas das mais diversas áreas de atuação e profissões (militares, funcionários públicos, advogados, comerciantes, etc).
O caso veio à tona após estudo de cinco anos do historiador e ecologista Gert Schinke. Pesquisador independente, ele garimpou os escaninhos do arquivo público e levantou mais de 44 mil títulos de terras devolutas repassadas pelo Estado desde 1870. O levantamento revelou que 37% das áreas do Estado foram repassadas a terceiros num curto período de quase 20 anos, que inclui o Irasc e a Colecate.
A pesquisa encontrou uma série de indícios de fraudes que resultaram no livro “O golpe da reforma agrária: fraude bilionária na entrega de terras em Santa Catarina”. O documento também foi entregue aos órgãos de controle do Estado no MP-SC (Ministério Público de Santa Catarina) e MPF. A primeira edição foi lançada em 2015 e em agosto de 2017 a pesquisa foi ampliada e relançada em segunda edição.
O estudo nomina 1.098 requerentes de terras do Estado através dos três principais órgãos que administraram o patrimônio de terras devolutas do Estado. As listas também apontam cruzamentos de dados mostrando quanto dos beneficiados com terras estão entre os maiores devedores do município.
(VejaMatéria completa em Notícias do Dia, 23/09/2017)
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