Com a fala embargada, mas com as mãos firmes de quem manipula os bilros de renda desde os oito anos de idade, Norma Barcelos Felisberto chamou de absurda a decisão da Justiça Federal para colocar no chão 923 imóveis situados a 30 metros da margem da Lagoa da Conceição. Aos 70 anos de idade completados na última semana, da janela do pequeno rancho, ela viu a Lagoa se desenvolver e se transformar num dos principais destinos na Ilha de Santa Catarina. A mesma opinião se desdobra entre moradores, comerciantes e até mesmo turistas, todos surpresos com a possibilidade de uma transformação drástica no visual da formosa Lagoa.
O absurdo do qual a Norma se referi vem acompanhado de um questionamento: “Como podem dizer que vão derrubar tudo se até ontem deixavam construir, meu filho?”, indaga se referindo as construções e reformas ao longo da avenida das Rendeiras nos últimos anos. Ainda impressionados e sem saberem ao certo o futuro para quem vive ou trabalha no entorno da Lagoa, desde o centrinho, Costa, Porto, Canto e Barra da Lagoa, a Amola (Associação dos Moradores da Lagoa da Conceição) se reúne com a comunidade, na noite desta segunda-feira, para definir como vão se defender da decisão. O encontro está marcado para as 20h na SAL (Sociedade Amigos da Lagoa).
Há mais de quatro anos, no dia 4 de julho de 2010, o juiz federal Guy Vanderley Marcuzzo proferia a decisão que cobrava da Prefeitura de Florianópolis a regularização das construções na faixa de proteção ao redor do elemento hídrico. Em maio deste ano, o Ministério Público Federal voltou a tocar no assunto, argumentando que ao longo dos últimos anos a decisão de Marcuzzo vinha sendo ignorada. Segundo manifestou o Ministério Público Federal à Justiça Federal, além de não ter cumprido com a decisão de fazer o levantamento dos imóveis que estariam em Área de Preservação Permanente, os órgãos que emitem alvarás e licenças para construções na região estavam agindo de forma “desarmônica”.
Sem mais prazos para que a prefeitura recorresse na Justiça, no dia 26 de maio deste ano o juiz Marcelo Krás Borges determinou o cumprimento da decisão. A notícia, que veio à tona na última semana, tem tirado o sono de milhares de moradores e comerciantes que ocupam a região há décadas. Em alguns casos, as mesmas famílias estão no mesmo ponto mais de uma centena de anos.
A Prefeitura de Florianópolis ainda terá mais uma audiência com a Justiça Federal, mas só poderá tratar de prazos e modos parara aplicação das demolições. O município afirmar que vai acatar a determinação.
Comerciantes devem se reunir para recorrer na Justiça
Entre os imóveis que estão dentro da faixa de 30 metros determinados pela Justiça é possível encontrar as diversas faces da Lagoa, desde nativos pescadores e rendeiras até os mais cosmopolitas dos cidadãos, vindos de diversas partes do mundo.
Receosos de que a decisão da Justiça Federal possa privilegiar uns em detrimento de outros, com menos recursos e instruções jurídicas, uma das propostas dos moradores é criar uma associação só para tratar exclusivamente da causa. Como nem todos possuem a mesma condição financeira, a proposta é ratear os custos advocatícios de cada um, “garantindo tanto aos que têm mais condições, como eu que sou dono de restaurante, como para a rendeira que precisa trabalhar para viver”, como disse Bonifácio Darci Nunes, 30, proprietário do Bar do Boni, que funciona há pelo menos 60 anos no fim da avenida das Rendeiras.
A decisão da Justiça é contra a Prefeitura de Florianópolis, que deveria fazer o levantamento da situação dos imóveis. Cada um dos proprietários poderá recorrer individualmente.
Associação e deputado acreditam em alternativas
O Presidente da Associação de Moradores da Lagoa da Conceição, Alécio Passos, diz que a associação vai tomar uma posição oficial na reunião desta segunda-feira. Morador da Lagoa, Alécio considera que a demolição deveria ser a última alternativa, e acredita que possa ser criado um plano de reuso sustentável por quem ocupa a orla. No entanto, segundo ele, é fundamental a garantia dos acessos à lagoa e a retirada de obstáculos como decks, muros marinas, cercas e paredes. “A demolição é inviável até porque a prefeitura não tem estrutura e os próprios entulhos podem causar danos ainda mais graves para a Lagoa”, disse. Segundo a legislação, a cada 125 metros deveria haver uma passagem para a Lagoa de no mínimo três metros de largura, que também não é respeitada.
Ex-prefeito de Florianópolis (1986-1988) e nativo da Lagoa da Conceição, o deputado estadual Edison Andrino (PMDB) acredita que outras alternativas poderiam ser tomadas. “Até porque o Código Florestal fala em situações consolidadas. A casa onde eu moro era do tio do meu pai, uma ocupação de mais de cem anos”, declara afirmando que a maioria da ocupação é consolidada. “Temos invasões recentes, mas essas são minoria”, completa Andrino.
Ocupação se consolidou de pai para filho
Há mais de oitenta anos, o pai de Darci Maurílio Nunes, 62, erguia no final da avenida das Rendeiras uma das primeiras “vendas” da região. O local ainda abrigava um rancho de pesca que mais tarde deu lugar ao tradicional Bar do Boni, que só no último fim de semana mobilizou cerca de 1.500 pessoas. “Acredito que a demolição não é o certo, o ideal é legalizar quem está consolidado e que cada um sirva de fiscal para impedir novas ocupações”, opina Bonifácio Darci Nunes, 30, que hoje toca o restaurante da família.
Cativante pela beleza natural que cuidadosamente forma a única laguna da Ilha, o turismo da Lagoa da Conceição se solidificou ao longo dos anos reunindo no entorno da sua orla gastronomia típica, atividades culturais e atividades para resgate da cultura local. “Se tomarem essa medida podem fechar também as estradas para a Lagoa, imagino o impacto no turismo da cidade”, reclama Boni, cobrando que medida parecida seja tomada também no restante da cidade, onde a ocupação costeira também estaria infringindo as leis.
(Notícias do dia, 21/07/2014)
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