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Caminhos das montanhas revelam paisagens exuberantes de Florianópolis e crimes ambientais

Paisagens inéditas e efeitos da ocupação desordenada começam a ser mostrados a partir deste fim de semana, em série inédita sobre os cumes da Ilha. Depois de duas semanas de caminhadas pela mata, foram produzidas quatro reportagens sobre aspectos específicos de cada montanha, de onde se têm ângulos inéditos da cidade e de parte da região metropolitana de Florianópolis.

Foram percorridos caminhos históricos, picadas de caçadores e trilhas abertas por guias locais. Árvores centenárias e nascentes de água cristalina são sintomas de floresta em plena fase de regeneração, de fauna e flora. A cordilheira central é formada por cadeias de montanhas que se estendem de Sul ao Norte da Ilha, separadas apenas pela planície de entremares do Campeche.

Pelo menos 70% da floresta primária foram derrubados para exploração de madeira nobre, ou implantação de pastagens e plantios tradicionais — cana, mandioca, café, milho e feijão. “O que restou de mata original são alguns hectares de canela no maciço do Peri”, diz Mauro Manoel da Costa, do Departamento de Unidades de Conservação Ambiental da Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente).

No morro do Ribeirão, palmiteiros aproveitam a falta de fiscalização e deixam rastros de destruição. No maciço da Costeira, a comunidade se organiza para implantar o parque municipal, e conter ocupações irregulares. A cordilheira do Assopro, entre Lagoa da Conceição e Ratones, não é protegida por lei municipal. Enquanto isso, no morro dos Macacos, a especulação imobiliária ameaça o corredor ecológico.

Aventura termina após 10 horas na mata

As dores no corpo das caminhadas anteriores persistiam. Mas o tempo estava bom e também precisávamos aproveitar a disponibilidade do guia que nos levaria ao morro do Ribeirão, o ponto mais alto da cidade, com altitude entre 532 e 537 metros – ou 600 metros, como relata o historiador Virgílio Várzea no livro “A Ilha”, edição de 1900.

Mal acostumados com as “facilidades” das caminhadas anteriores, subestimamos o primeiro aviso do guia, que queria sair cedo para aproveitar a claridade do dia. Subestimamos a montanha. E, atrasados, chegamos à Freguesia uma hora depois do combinado com Carlos Eduardo da Cunha, 29, que a vizinhança só conhece por Pitu. Ele já nos esperava ansioso, com roupa camuflada, cantil e facão na cintura. Na mochila, equipamento fotográfico e o inseparável tablet, com internet e GPS.

Só ali, enquanto subíamos a servidão ao lado da igreja Nossa Senhora da Lapa, o fotógrafo Daniel Queiroz se deu conta que não havia mercado por perto, e não estava levando nada para comer. Apenas uma garrafa pet de dois litros de água. Sede não passaríamos, alertou Pitu. Fontes de água cristalina brotam das rochas e formam cachoeiras morro abaixo.

Como na mata a regra básica é um cuidar do outro, subi consciente de que dividiríamos os três pacotes de bolachas, duas laranjas, a maçã e a manga que eu levava na mochila. Fome também não iríamos passar, pensei.

A subida até a laje da pedreira exigiu esforço. A vista exuberante da baía Sul, até a ponte Hercílio Luz, com os morros do Cambirela e da Pedra Branca ao fundo, nos entusiasmou. Queríamos chegar ao topo, ver a Lagoa do Peri do outro lado.

Há três anos sem subir o morro, nosso guia precisou reabrir o caminho a facão. Em alguns trechos a trilha foi engolida por árvores caídas, folhas e troncos de palmitos cortados e vegetação alta. Chegamos ao cume pouco depois das 16h. Na volta, Pitu resolveu encurtar caminho e descer pelo Alto Ribeirão, mas as dificuldades aumentaram.

Encantados por um camaleão que se recolhia ao ninho, não percebemos que na floresta escurece mais cedo. Saímos da trilha e, iluminados apenas pela lanterna do celular e pela lua crescente, tivemos que abrir caminho para  descer desfiladeiros e chegarmos a uma das cachoeiras que descem à localidade do Barro Vermelho.

Seguidos desde o começo da caminhada pelos vira latas Catinga e Faísca, também famintos, chegamos à rodovia Baldicero Filomeno 10 horas depois. Neste momento, os plantonistas do Corpo de Bombeiros já tinham sido avisados pelos colegas da redação que estávamos sãos e salvos.

No rastro dos palmiteiros

As marcas estão por toda parte. Galhadas secas obstruem pequenas cachoeiras, e troncos cortados em sequência formam clareiras abaixo das copas centenárias de figueiras brancas, garapuvus e uma ou outra canela. Vestígios de acampamentos também são rastros deixados pelo corte clandestino e sem controle de palmito, a palmeira juçara, em picadas abertas a foice e facão nas encostas do morro do Ribeirão, o ponto mais alto da Ilha – com altitude entre 532 e 537 metros.

Mão de obra barata, no Sul da Ilha os cortadores de palmito atuam sistematicamente em todos os morros do maciço da Lagoa do Peri. Dentro e fora do parque municipal criado pela Lei 1.828/81 e, a exemplo das demais áreas de mata atlântica teoricamente protegidas na Ilha, ainda não cadastrado no SNUC (Sistema Nacional das Unidades de Conservação).

Os cortadores de palmito, segundo fiscais do parque, são mateiros experientes, geralmente recrutados em Biguaçu, Palhoça, Navegantes e Itajaí.  Com suprimento suficiente para longos períodos, e água pura abundante ao lado das áreas desmatadas, ficam de 15 a 45 dias embrenhados na mata. E têm tempo para percorrer de um lado ao outro da montanha.

“É gente perigosa, andam armados e prontos para o confronto. Alguns sequer têm documentos”, diz Mauro Manoel as Costa, chefe da Divisão de Implantação e Manejo do Departamento de Unidades de Conservação Ambiental da Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente).

Além da falta de fiscalização, os palmiteiros contam com a colaboração de moradores da região com acesso a áreas de corte. “Pessoas que permitem a entrada e ensinam antigas trilhas de caçadores. Depois, facilitam a saída das caminhonetes com a carga extraída ilegalmente”, completa Costa. Em extinção nas matas da Ilha, o palmito cortado clandestinamente no morro do Ribeirão vira conserva em microempresas da região e Itajaí.

Floram e Polícia não fiscalizam

Desarmada e deficiente, a fiscalização da Floram jogou a toalha. Reconheceu a fragilidade da estrutura municipal e entregou o palmito à Polícia Militar Ambiental. As denúncias são constantes, dentro do parque e na APP (Área de Preservação Permanente) do entorno. “Mas, não temos como monitorar a mata, a área é extensa, e repassamos a eles”, diz um dos fiscais da Floram.

Segundo moradores, foices e facões não são apenas ferramentas para os palmiteiros, apesar de alguns já terem sido ameaçados também por armas de fogo. Na Polícia Ambiental, o argumento é o mesmo. “Trabalhamos de acordo com a demanda, mas não podemos estar em todos os lugares ao mesmo tempo”, diz o soldado Vitor Oliveira.  Fora da rotina, a providência adotada após as denúncias de corte é a intensificação de barreiras em parceria com a PRE (Polícia Rodoviária Estadual).

Pelos levantamentos recentes de Mauro Manoel da Costa, o corte indiscriminado das últimas reservas de palmito nas matas de Florianópolis se acentuou nos últimos 15 anos.

Matéria prima da polpa do açaí consumida em sucos e vitaminas nos centros urbanos, e alimento preferido de tucanos, aracuãs, gralhas, gaturamos, macacos pregos e outros animais silvestres, a palmeira juçara se espalhou pelas montanhas da Ilha por dispersão natural.

Ocorria, principalmente, em densas florestas no entorno das cachoeiras dos maciços do Peri e da Costeira e, em menor escala, na cordilheira da Lagoa até Vargem Grande. “A falta de fiscalização e de educação ambiental facilita este tipo de crime ambiental, e abre caminho para a ocupação humana”, alerta Costa.

Ir ao cume da Ilha tem sido como brincadeira de crianças para várias gerações no Ribeirão da Ilha. Caminhar por caminhos de carro de boi e reabrir antigas trilhas de caçadores e caminhos são rotina para quem está acostumado com a rotina cansativa da pesca e da maricultura, principais atividades econômicas da comunidade mais açoriana de Florianópolis.

Pitu subiu o morro pela primeira vez aos nove anos

A subida é árdua, mas não desencoraja o fotógrafo amador Carlos Eduardo da Cunha, de 29 anos, que na Freguesia todos chamam de Pitu e percorre os caminhos da montanha desde a infância. “Fui pela primeira vez aos nove anos, sem avisar nada para não preocupar a família”, conta. Mais tarde, quando desaparecia por algumas horas, os pais já sabiam que estava no morro.

“Os antigos contavam que escravos fugiam dos senhores de engenho e se escondiam no alto do morro”, diz. Enquanto descansa na laje sobre pedreira abandonada pela empresa Engepasa, e usada eventualmente por escaladores ou treinamento de militares da Base Aérea de Florianópolis, Pitu mostra a baía Sul lá embaixo – do Ribeirão à ponte Hercílio Luz.

A parte continental da Capital, São José e Palhoça aparecem à frente, onde a Pedra Branca e o Cambirela se destacam no Parque do Tabuleiro. O trecho duplicado da BR-101 é visto entre Praia de Fora e Enseada do Brito.

Foram três paradas para matar a sede e encher os cantis em cachoeiras que formam o Ribeirão. Até que surge a pedra do Caçador, rocha inclinada que serve de abrigo para a fogueira e o pernoite seguro. A caminhada segue ao marco de concreto que sinaliza o topo da Ilha, depredado por vândalos, que levaram o brasão do Exército Brasileiro. Quem chega lá em cima, tem o privilégio de ver de ângulos inéditos parte da Lagoa do Peri e das praias do Morro das Pedras e Campeche, com a ilhota ao fundo.

(Édson Rosa, Notícias do Dia, 22/04/2013)

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