De quantos erros se faz um acerto? As ONGs, detentoras de toda virtude na virada do milênio, parecem ter se transformado no depositário dos males nos dias que correm. A questão não deve ser minimizada: são quase 300 mil ONGs operando no Brasil.
Não apenas pelo volume, estamos falando de um setor da sociedade civil que toma para si responsabilidade sobre os graves desequilíbrios sociais do país. Falamos, portanto, de um segmento da população que é gente do bem, que se penaliza com a sina dos excluídos (da saúde, da educação, das redes de proteção social) e arregaça as mangas para operar a inclusão.
Então, o que são essas ONGs dos “companheiros” recebendo milhões do dinheiro público para prover serviços que não chegam a seus destinatários? Dinheiro governamental para organizações não-governamentais?
Será esse modelo de financiamento estatal diferente do modelo inaugurado no governo passado para a ONG chapa-branca da primeira-dama?
Qual a diferença? O fato de que aquela trabalhava com seriedade, buscando resultados? No Brasil de sempre, estamos falando em dinheiro público fácil para os amigos do rei.
O que é necessário, então, para moralizar esse setor que, por definição, é do bem? Primeiro, não o demonizar. Tomemos o exemplo da ONG de “Tropa de Elite”, filme que se revelou um potente sensibilizador de corações e mentes. O filme traz algo de emblemático sobre esse universo no momento em que o Congresso Nacional, do alto de toda sua “pureza”, discute uma CPI das ONGs, pois a ONG do filme é um retrato do bom-mocismo que o Rio tem oferecido ao cenário do terceiro setor.
Diz-se que, no Rio hoje, há mais ONGs que população excluída. Exagero, claro. Mas a “jeunesse dorèe” que nos tempos de Ibrahim Sued passava o dia sob os raios do sol deu lugar a uma juventude que discute Foucault e sobe o morro para resolver os problemas da humanidade.
Nada mudou? Quando os cidadãos estão preocupados com sua circunstância, quando, em vez de ir à praia, vão à ONG, o “baseado” pode ser o mesmo, mas algo mudou na consciência do país.
Levando à frente a metáfora da ONG de “Tropa de Elite”, como é que vamos enxergar quando o sujeito de nossa ação precisa de óculos? Deitados nas areias de Ipanema? Subindo o morro para debater grandes questões da humanidade?
Quem deveria detectar que o aluno precisa de óculos é a escola, a professora de sala de aula. Em vez de discutir Foucault na faculdade -ou além disso-, deveria ser instrumentalizada a detectar os problemas de aprendizagem de seus alunos.
Assim como não se imagina um engenheiro sem capacitação para construir uma ponte sólida, um médico que não conheça bem a composição dos medicamentos, por que se tolera um professor formado sem as condições técnicas de aferir a capacidade de aprendizagem de seus alunos?
Não é ele que vai formar o engenheiro que constrói as nossas pontes e o médico que cuida da nossa saúde? Se o professor não o faz, é útil à sociedade que ela tenha se organizado em células de voluntários capazes de ter capilaridade e assim chegar às microrrealidades. É uma chance a mais que temos de salvar um educando, que, em vez de agredir, vai estar ao lado dos que querem edificar a pátria.
O Brasil mudou: em vez de a praia contemplar o morro como um cenário colorido e exótico, hoje não sabemos onde começa um e termina o outro. O resultado é um quadro bem menos róseo que aquele pintado pelos gloriosos criadores da bossa nova.
Vivemos o momento da confrontação. Enquanto estivéssemos na contemplação, não teríamos mudança. A confrontação é que abre espaço do jornal para que saibamos como raciocina o “correria”, para que saiamos de nossa aparente zona de conforto.
No que me diz respeito, quero dizer -e não vou cansar de dizer nunca- que a única chance que temos de gerar uma mudança conseqüente é investir na professora do “correria”, do médico e do engenheiro. Enquanto isso, que as ONGs do bem continuem disseminando seu maior valor, o do civismo, esse sentimento de que somos todos co-responsáveis. E que as organizações que agrupam ONGs e outras organizações do terceiro setor se mobilizem para fazer o auto-exame e a auto-regulamentação, antes que a burocracia invente mais papéis e taxas e instâncias e impedimentos.
Evelyn Berg Ioschpe, 59, socióloga e jornalista, é presidente da Fundação Iochpe e participa dos conselhos da Bienal Internacional de São Paulo, do Gife (Grupo de Instituto Fundações e Empresa), do qual foi foi presidente fundadora, e do museu Lasar Segall.
(Folha de SP, 21/11/2007)
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