Pesquisadores do Laboratório de Ficologia (Lafic) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) identificaram a presença de quantidades elevadas de uma toxina proveniente de cianobactérias na Lagoa do Peri e a possibilidade de a substância, que pode ser letal em altas doses, chegar ao mar da Praia do Matadeiro e contaminar mariscos e ostras. O trabalho, que também conta com a colaboração de cientistas da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), envolveu coletas quinzenais, realizadas em 2018 e 2019, na Lagoa do Peri, no Canal do Sangradouro, que conecta a lagoa ao mar, e na Praia do Matadeiro, além de experimentos em laboratório com mexilhões. Os resultados foram publicados na revista científica internacional Harmful Algae, a mais importante do mundo no tema de florações de algas nocivas e ficotoxinas.
A Raphidiopsis raciborskii é uma cianobactéria – uma das categorias de microalgas – que produz uma das mais poderosas e letais toxinas naturais conhecidas: a saxitoxina, também chamada de toxina paralisante. Apesar de a Lagoa do Peri não ser um corpo de água poluído, essa cianobactéria encontra ali condições para proliferar, especialmente no verão. Desde 1994, há registros de sua presença no local, e os dados coletados desde então demonstram que vem aumentando a população da microalga.
Os níveis de saxitoxinas encontrados na lagoa ao longo do estudo passaram de seis microgramas por litro nos dias de maior calor – um valor alto e que pode oferecer risco à fauna e à flora local, bem como às pessoas que se banham ali. Para efeito de comparação, o limite máximo permitido no Brasil para a água tratada – aquela que chega às torneiras de nossa casa – é de três microgramas por litro.
“Foi um dado bem ilustrativo de um período de verão, de calor. E, depois acabou escoando, em função de chuva, para a saída da lagoa e em direção ao mar. Ou seja, foi um dado bem sintomático do que pode acontecer numa chuva forte de verão, porque no verão tem mais da cianobactéria, ela produz mais toxinas, e, como chove mais, nós temos maior possibilidade dessa água ir para o mar”, explica Leonardo Rörig, professor do Departamento de Botânica da UFSC e um dos autores do estudo.
O docente alerta que aquela não foi a maior concentração de saxitoxina já verificada na lagoa: “A gente fez amostragens e análises em outros momentos, em que valores foram eventualmente maiores, mas não foi sistemático, e a gente não publicou”. Ele conta que, em 2020, a população entrou em contato com o Lafic para relatar espumas e manchas na água da Lagoa do Peri em ao menos duas ocasiões.
“Houve acumulação muito grande dessa alga, que poderia indicar valores provavelmente ainda maiores, porque, quando nós determinamos esse valor de seis [microgramas por litro], a gente não via uma espuma ou uma acumulação visível das algas, ou das cianobactérias, na água. Mas houve momentos em que se viu isto: a mesma cianobactéria presente na água em quantidades visíveis. São situações em que a gente fica preocupado, porque se já foi elevado o valor de toxina numa condição em que o acúmulo de algas não era grande, em eventuais situações em que o acúmulo de alga seja grande, nós podemos estar expondo pessoas ou animais domésticos que entrem em contato com a lagoa.”
Os dados reforçam a necessidade de uma fiscalização permanente. “Seria importante um bom investimento em um monitoramento maior. O monitoramento ali existe, mas a gente acha que ele deveria ser aprimorado”, realça o professor. A recomendação à população, na ausência de um controle mais sistemático, é de não entrar na água, nem comer nada que venha dela, caso haja espuma ou manchas visíveis.
Toxinas em mexilhões
Os cientistas também constataram que essas cianobactérias e suas toxinas podem atingir o mar da Praia do Matadeiro, por meio do Canal do Sangradouro, e ser consumidas por organismos marinhos. Essa, aliás, é a principal novidade do estudo. Testes realizados em laboratório com os mexilhões Perna perna – espécie que ocorre e é cultivada na costa de Santa Catarina – demonstraram que o animal filtra e acumula as toxinas em sua carne. Isso, enfatiza Leonardo, torna completamente proibitivo o cultivo de mexilhões na Praia do Matadeiro. O mesmo vale para as ostras, uma vez que ambos retiram seu alimento diretamente da água, por meio de um processo de filtragem, e podem acumular grandes quantidades de toxinas sem serem visivelmente afetados por elas.
“A principal conclusão é que não se pode jamais, e tem que se controlar isso, colocar cultivo de mexilhões nas proximidades da Praia do Matadeiro ou consumir mexilhões e outros filtradores coletado naquela região, porque a chance de que esses animais tenham historicamente uma concentração dessa toxina é muito grande. Essa é uma coisa urgente de esclarecer à comunidade”, frisa ele. O consumo de peixes, contudo, não precisa ser evitado – eles não tendem a acumular quantidades consideráveis da toxina e são uma via de contaminação muito rara.
Riscos para a saúde
O consumo das saxitoxinas pode levar à paralisia respiratória e à morte, e não há antídotos conhecidos. “Claro que para haver uma dose suficiente para gerar efeito, que a gente chama de concentração de efeito, é necessária uma exposição brusca e alta ou frequente e baixa. Pode ser até baixa, mas se ela for frequente, se tiver em contato com essa dose por muito tempo, pode haver um efeito que a gente chama de crônico”, afirma Leonardo. “Às vezes, tomando a água do mar, não vai ter problema, mas comendo um mexilhão que filtrou dezenas, centenas de litros de água ao longo de meses ou até anos de sua vida, sim. Comer essa carne do mexilhão, ou da ostra, com a toxina acumulada, pode levar à morte”, complementa. Mesmo pequenas porções, quando contaminadas, podem gerar intoxicação grave, mas esse, felizmente, não é um problema comum na costa de Santa Catarina.
Como comentado anteriormente, é importante evitar o banho na lagoa quando houver manchas ou espumas. Mesmo que os perigos de entrar na água contaminada não sejam tão graves quanto o do consumo de moluscos, existe um potencial de que as toxinas ou mesmo outros produtos produzidos por essas microalgas sejam alergênicos e possam afetar pessoas mais sensíveis. Quanto ao banho de mar no Matadeiro, o professor salienta que não parece haver risco, uma vez que as toxinas acabam sendo bastante diluídas. Em nenhum momento, o grupo identificou ali concentrações de saxitoxinas que pudessem ser consideradas perigosas para banhistas.
Tratamento e consumo da água
A água da Lagoa do Peri não é utilizada só para o lazer. É também uma importante fonte de abastecimento público, chegando a cerca de 100 mil habitantes. Por se tratar de uma área de preservação, não se pode realizar tratamentos para remover as cianobactérias ou suas toxinas da lagoa. Mas, em geral, o processo de tratamento da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) remove a toxicidade, especialmente durante o processo de adição de cloro. A pesquisa não incluiu a análise da água tratada, porém os cientistas ainda têm algumas preocupações.
Com o crescimento das populações de cianobactérias, existe a possibilidade de que parte delas passe pelo sistema de tratamento, e o monitoramento realizado pela Casan, segundo os pesquisadores, pode não ser o mais adequado para a detecção das variantes de toxinas. “Isto que a gente questiona no trabalho: o método que eles utilizam não necessariamente detecta todas as toxinas presentes. Ele detecta boa parte, mas não todas. Existe uma situação de dúvida e de risco”, informa Leonardo.
O que pode acontecer é o acúmulo de pequenas quantidades ao longo do tempo. “A gente encontra essa alga na caixa d’água de casas, já analisamos várias caixas d’água, filtros, e as algas se concentram. Essa concentração lenta e gradual, mesmo com pequenas quantidades de toxinas, que são indetectáveis num determinado dia, em algum momento podem se acumular na rede, numa caixa d’água ou num filtro e oferecer risco”, destaca o professor. Ele aponta ainda que alguns estudos mostram que a ingestão constante de saxitoxina no decorrer dos anos, mesmo que em doses pequenas, pode resultar em sintomas neurodegenerativos, semelhantes ao do Alzheimer, além de afetar a química hormonal.
O Lafic mantém parcerias e contatos frequentes com a Casan. Os dados obtidos no âmbito do estudo, inclusive, foram compartilhados com a instituição antes mesmo da publicação do artigo. Alguns progressos já foram observados, como a implementação de uma mudança no sistema de tratamento que pode tornar mais eficiente a eliminação das microalgas.
Para Leonardo, a pesquisa renova o debate sobre a segurança do uso das águas da Lagoa do Peri para abastecimento público. “O que o estudo indica é que existem doses muito elevadas na lagoa e que isso é um risco. A gente está sob constante risco de, eventualmente, se der algum problema no monitoramento ou no tratamento de água, estar distribuindo toxina na rede. Esse é um risco que tem que ser muito bem avaliado e monitorado”, ressalta o professor.
(UFSC, 14/05/2021)
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