Se a revolução começa pelo prato, a escolha dos ingredientes é a primeira batalha na busca de hábitos sustentáveis de consumo, que beneficiem a economia local e melhorem a saúde da população.
Com o objetivo de promover a inovação gastronômica e valorizar a cadeia produtiva baseada em produtos catarinenses, o Núcleo de Estudos em Gastronomia do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) tem se dedicado a explorar a rica biodiversidade do Estado para levá-la à mesa com qualidade técnica, estética e com o mínimo de desperdício.
Nos laboratórios do Campus Continente, em Florianópolis, pratos foram criados por alunos e professores no último ano com ingredientes comuns da nossa terra, que muitas vezes estão ao alcance das mãos, mas até então não recebiam o devido valor.
As possibilidades de cardápios (veja abaixo) são infinitas e podem transformar a identidade gastronômica regional, fortalecendo a indústria criativa do turismo e as propriedades com práticas agroecológicas, como destaca a coordenadora do núcleo, a professora Fabiana Mortimer Amaral, 43 anos:
– Nossa proposta é chamar a atenção do produtor, do empresário, do poder público e do consumidor para a goiaba serrana, o pinhão, a pitanga, o araçá, a uvaia e uma gama de produtos que poderiam estar na mesa dos catarinenses – defende.
Desde 2010, quando o núcleo iniciou os trabalhos, a docente conta que não foram poucas as vezes em que o grupo de pesquisa se deparou com situações de desperdícios de alimento.
– Não acreditamos quando disseram que dois cochos repletos de goiaba serrana, o equivalente a duas toneladas do produto, foram lançados aos porcos de uma pequena propriedade da Serra – lembra. – O fruto, que é nativo daqui e encontrado em abundância nas áreas mais altas do Estado, é vendido em mercados de São Paulo a R$ 75 o quilo.
De acordo com a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina S.A. (Epagri), que pesquisa a espécie desde 1986, a goiaba serrana tem valores antibactericidas, antioxidantes e antialérgicos superiores a frutos como amora, manga, framboesa e morango. O elevado índice nutricional e medicinal, combinado com o sabor doce-acidulado e o aroma agradável, despertou o interesse dos pesquisadores. O fruto já foi utilizado na fabricação de sorvetes, mousses, na forma de tempero para carnes, essência para sobremesa, farofa e vinagrete.
– É um alimento versátil, de alto valor agregado e que a maioria dos produtores ignoravam – diz Fabiana.
O esforço de conscientizar a base da cadeia produtiva sobre o potencial da goiaba serrana e de outras culturas encontrou respaldo em outro Campus do IFSC. Parceiro e consultor de associações de agricultores orgânicos da região, o curso Técnico em Agroecologia, em Lages, tem desempenhado o papel de disseminar as oportunidades sugeridas pela cozinha. E o contexto é ideal para novas ideias, segundo avalia o professor Roberto Komatsu.
– Nos últimos anos, houve melhora na parte técnica de cultivo, aumentou a produção e os pontos de vendas de orgânicos na cidade e vejo mais alunos que preferem ficar no campo a tentar a vida nos grandes centros. Nesta rede forte que vai se formando, a gastronomia é o incentivo para a consolidação deste cenário – diz.
Além da Agroecologia, os cursos de Biotecnologia e Análises Químicas na Serra integram a pesquisa.
Cardápio à catarina
Carpaccio de pupunha, com molho de pitanga
Pato laqueado com mel de bracatinga, com purê de cenoura orgânica e molho de uvaia
Mini hambúrguer no pão de erva-mate com ketchup de araçá
Filé mignon de porco confitado, em crosta de goiaba serrana seca e jus de porco, acompanhado de mousseline de aipim
Drink a base de creme de jabuticaba ou uma cerveja IPA de araçá
Doces aprendizados
A confeitaria tem sido uma estratégia interessante utilizada pelo Núcleo de Estudos em Gastronomia do IFSC para aproveitar as frutas nativas do Estado. Na tentativa de provocar a criatividade dos alunos, a professora Alice Nogueira Novaes Southgate costuma dizer em sala de aula “que existe mais entre o céu e a terra do que petit gateau de chocolate e brownie com sorvete”.
São algumas das criações do núcleo o bombom com recheio de uvaia e goiaba serrana; o bem-casado de uvaia; o creme doce de pinhão; o mousse de goiaba serrana, e a farofa crocante de limão com calda de uvaia.
– Procuramos mesclar as técnicas modernas com saberes e gostos tradicionais de Santa Catarina, fazendo um resgate do modo de vida dos antigos, da história dos sabores – explica.
Fazer uma releitura de preparações comuns aos antigos foi a escolha de trabalho de conclusão da aluna Érika Batti, 25 anos. As criações utilizam produtos típicos do Estado, como café, pinhão, milho, farinha de aipim, jabuticaba, melado e sagu.
– Quis dar um olhar contemporâneo para pratos tradicionais, como a bijajica e a consertada. São sabores que sempre estiveram na minha família e que quero levar para a minha carreira – diz.
Inovações de serra e mar
Acostumado a tirar do mar a inspiração para sua cozinha, o chef Narbal Corrêa, 54 anos, voltou os olhos para a Serra Catarinense depois de participar de um almoço no Campus do IFSC, oferecido pelo Núcleo de Estudos em Gastronomia no ano passado. O encontro reuniu 60 convidados, entre cozinheiros experientes, empreendedores do setor do Turismo, produtores e empresários do ramo de sorvetes, e promoveu uma verdadeira campanha a favor das frutas nativas, com um desfile de pratos.
– Fiquei admirado com o evento, com a variedade, sobretudo pela defesa da produção artesanal, da valorização do pequeno agricultor – conta o cozinheiro, adepto do conceito do terroir, que preza pela comida fresca, preparada com insumos que sejam produzidos o mais próximo possível do restaurante.
Fisgado pelas ideias e movido pelo espírito inovador que caracteriza sua carreira, o profissional não demorou a encontrar fornecedores e incluir no cardápio do seu restaurante em Florianópolis algumas combinações de serra e mar. Bolinhos de pinhão com ovas de tainha, com truta defumada ou com lagosta; carpaccio feito com frescal, queijo serrano; e steak au poivre de frescal, acompanhado por cogumelo porcini e temperado com raspas de casca d’anta, árvore comum nas áreas mais altas do Estado e que possui sabor semelhante ao da pimenta-do-reino, são alguns dos pratos inventados por Narbal com produtos catarinenses.
– São produtos de grande aceitação, que seguem uma tendência que está crescendo no mundo
todo. A tal cozinha de família. Todo mundo só fala nisso. E aqui tem uma riqueza enorme neste sentido. Muita gente ainda não se deu conta, mas quando os gringos descobrirem vai explodir – profetiza o chef.
Jovens e orgânicos
Entre as responsabilidades de um chef, uma das mais importantes é a de servir como vitrine para os ingredientes que são produzidos na outra ponta da cadeia. Quando um prato tem aceitação do público, toda a rede é fortalecida e começa a gerar transformações significativas, como a de jovens apostando na produção orgânica.
Na metade deste ano, Luana Pires da Silva arrendou três hectares de um sítio com 20 espécies frutíferas, localizado a seis quilômetros do centro de Lages. São muitos os afazeres ao longo da semana. Regar e trabalhar na horta, separar verduras, legumes e hortaliças para entregar em um restaurante da cidade, produzir conservas, fazer doce de leite e recolher os ovos para a venda. Independente da tarefa do dia, depois do almoço ela vai para o IFSC, onde cursa o Técnico em Agroecologia.
Luana tem apenas 21 anos, seus pais não trabalham no campo, mas depois de frequentar as aulas ela decidiu investir na produção orgânica e na defesa de uma alimentação mais saudável, com preço justo e sustentável.
– Soa um pouco contraditório, por eu ser totalmente urbana, mas tenho me realizado. Com minha produção, consigo incentivar meus amigos, familiares a consumirem alimentos de qualidade e ao mesmo tempo tenho uma renda. Vendo ovos para pagar mudas, tiro de um lado e coloco em outro. Tem sido estimulante e transformador – diz a jovem.
Para o professor Komatsu, Luana representa uma nova mentalidade sobre a relação com a alimentação, que vai desde o produtor até o consumidor.
– Estamos em uma fase de transição que não tem volta. A demanda pelo orgânico tende a aumentar e, por ter eco entre as novas gerações, pode se tornar um atrativo importante para a permanência dos jovens no campo – prevê.
Estudante do Curso de Manejo de Videira e Produção de Vinho, Marconi de Souza, 30 anos, deixou de morar em Florianópolis para voltar a Urupema e mudar a realidade dos dois hectares onde o pai produzia maçãs de maneira convencional, com agrotóxicos.
– Esse sistema não se sustenta mais. Todo ano entra praga nova, uma doença que aumenta o custo e fica mais difícil. Meu pai entendeu que com o orgânico você reduz o volume de produção, mas agrega valor. Estamos na fase de transição – diz o rapaz.
Segundo dados recentes divulgados pelo Ministério da Agricultura, de 2013 até este ano, o número de unidades de produção orgânica no país saltou de 6.700 para 14.449, confirmando o crescimento do setor.
Veja outras receitas do Núcleo de Estudos em Gastronomia, no canal Nada Gourmet no Youtube.
(Revista Versar, 06/01/2018)
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