A Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente) ainda não sabe quando, nem como, fará a demolição de quatro construções erguidas em área de marinha na praia de Naufragados, no extremo Sul de Florianópolis. O difícil acesso por terra ou pelo mar, de acordo com a assessoria jurídica e técnicos da divisão de fiscalização, exige o planejamento de uma estratégia especial para que a operação não tenha efeito negativo.
A maior preocupação é com o transporte de equipamentos e ferramentas para demolição dos imóveis, todos de alvenaria, e, posteriormente, na remoção dos entulhos. Por terra, o único acesso é a trilha íngreme e pedregosa, de quatro quilômetros, a partir do ponto final do ônibus da Caieira da Barra do Sul, trajeto que normalmente é percorrido em 1h20.
Pelo mar, botes de pescadores zarpam da prainha da Caieira, contornam toda a ponta sul da Ilha, atravessam a barra e, em 30 minutos, chegam ao canto da praia. A operação para desembarque, no entanto, não depende apenas da destreza do barqueiro e da agilidade do passageiro, mas, principalmente, das condições do tempo e do mar. Em dias de ventos nordeste, terral ou ressaca, o ideal é não arriscar a navegação.
O acúmulo de entulhos de demolições anteriores, em alguns casos encobertos pela vegetação nativa, é um dos argumentos da Amopran (Associação dos Moradores da Praia de Naufragados) para questionar a legitimidade da ação demolitória. Segundo o presidente, o condutor ambiental Ademar Alarício do Espírito Santo, 49 anos, o poder público não pode continuar omisso. “Além do impacto social, a demolição deixará mais um grave passivo ambiental, os entulhos”, argumenta Mazinho. O líder comunitário ressalta, também, que os atuais moradores são o único suporte para que visitantes e alunos de escolas públicas da região façam turismo e excursões científicas ao lugar.
Líder comunitário defende comunidade tradicional
Poucos conhecem os 15 caminhos e a história de Naufragados melhor que Mazinho, descendente de família bicentenária de agricultores e pescadores, que virou líder comunitário e condutor ambiental. Uma das primeiras moradoras da praia, a avó dele, Maria Madalena, foi dona da casa que mais tarde, em 1940, abrigou a guarnição do Exército Brasileiro que serviu no Forte Marechal Moura, na ponta sul da Ilha.
O pai, Alarício José do Espírito Santo, foi um dos soldados responsáveis pela artilharia, e atirou com a bateria de canhões durante os treinamentos na barra sul. Depois, seguiu o legado da família no trabalho na agricultura de subsistência e engenhos de farinha e cana de açúcar. “A produção de subsistência no morro perdurou até o início da década de 1970”, diz.
Segundo o presidente da Amopran, três situações caracterizam a formação da comunidade em Naufragados: ocupação, expansão familiar e invasão. “Quem não nasceu, como eu, ocupou o espaço e criou raízes, sem intenção de especular”, diz. São estas pessoas que oferecem alguma estrutura ao visitante, como alimentação, banheiros, informações e coleta de lixo.
Os invasores, segundo Mazinho, chegaram para especular e são a causa das ações judiciais. “O controle da ocupação é o objetivo da associação. Como o Estado, que se diz dono, abandonou, quem cuida do lugar é a comunidade”, garante o líder comunitário que, independentemente da ameaça de despejo, já começou a mobilizar a vizinhança, também, para mais um quarteirão do Divino. “Depois da Páscoa, a Bandeira passará de casa em casa e seguirá para a Caieira, até a Tapera da Barra do Sul”, explica.
Praia campeã na última safra da tainha
Entrada dos cardumes que passam pela Ilha na corrida para desova, litoral acima, Naufragados ficou com o Troféu Tainha em 2013, homenagem simbólica entregue a cada ano na praia que mais pescou com as tradicionais redes de arrastão de praia. Ao mesmo tempo em que reconhece a eficiência dos pescadores artesanais, o prêmio homenageia personalidades da cidade, como o ex-tenista Gustavo Kuerten, o nome lembrado no ano passado.
Na safra passada em Naufragados, as redes arrastaram 16.480 tainhas, cerca de 30 toneladas do peixe mais cobiçado e consumido no inverno em todo o litoral de Santa Catarina. Curiosamente, quem recebeu o troféu das mãos de Metuselã Fernandes, o Neném, criador do Troféu Tainha, foi Flávio Argino Martins, o Cacau. Patrão de uma das parelhas da praia, ele também é dono do restaurante Golfinho, com ordem de demolição da Justiça federal.
A pouco mais de um mês da próxima safra, assim como Cacau, o também pescador Andrino Sandino Borges,71, e filhos, recolheram as redes para a parte dos fundos do galpão que serve de restaurante e moradia e está com demolição determinada pela Justiça. “Nem sabemos se vamos pescar este ano”, diz. Segundo a Floram, o processo demolitório, quando ocorrer, não interferirá na rotina dos pescadores artesanais da praia, que receberão licenças para instalação provisória de ranchos de canoas e redes e abrigos para os vigias junto aos costões e dunas.
Um pouco de história
O nome surgiu de um episódio ocorrido naquela praia com um grupo de imigrantes açorianos, em 1753, que, por determinação da Corte Portuguesa, partiu em duas embarcações para o Rio Grande do Sul.
Uma tempestade inesperada na costa da Ilha de Santa Catarina fez com que os barcos fossem a pique, próximas da ponta da barra sul da Ilha.
Sobreviveram apenas 77 pessoas e Algumas prosseguiram para o Rio Grande do Sul, mas a maioria permaneceu na Ilha.
Na segunda metade do século 19, foi construído o farol naquela ponta, no alto do cabo rochoso, e inaugurado em 3 de maio de 1861.
É composto por uma torre branca e circular, de alvenaria, construída num maciço de 30 metros, o que elevava o conjunto a 42, 6 metros acima do mar.
No alto do costão sul, restaram ruínas do forte Marechal Moura, como as baterias de canhões, trincheiras, paiol e casa da guarda. O forte fez parte do sistema de defesa da Ilha, construído pelo brigadeiro Silva Paes, entre os séculos 17 e 18.
ENTENDA O CASO
Mosaico de leis
Em 1977, a região costeira, planície e morro de Naufragados da Barra do Sul são anexados ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, unidade de conservação estadual criada dois anos antes e administrada pela Fatma. Na época, passou a ser chamado de Tabuleirinho.
Em 2000, a Lei 9.985 criou o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), no qual o Parque do Tabuleiro deveria ser adequado. No entanto, a Fatma, o órgão gestor, não deu encaminhamento à elaboração e implantação do plano de manejo.
Em 2009, a Lei 14.661, que criou o mosaico do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, desanexou parte de Naufragados e criou a APA (Área de Proteção Ambiental) do Entorno Costeiro, do Estado. Os cinco anos de prazo para implantação de plano de manejo pela Fatma não foi cumprido.
Em 2011, a Amopran representou a comunidade em ação para recategorização daquela área do Parque do Tabuleiro, transformando a unidade de conservação ambiental integral em unidade autossustentável, semelhante à ação ganha recentemente por moradores de Vargem do Braço, em Santo Amaro da Imperatriz.
Atualmente, são 33 famílias filiadas à Amopran e outras quatro “independentes”, todas rés em ações judiciais individualizadas, movidas pelo Ministério Público Federal pelo fato de estarem em área de marinha (da União) ou pela Promotoria do Meio Ambiente do Ministério Público Estadual em Palhoça. Quatro destes processos já foram transitados em julgado, ou seja, não cabem mais recursos.
A mesma Lei 14.661 manteve dentro do Parque do Tabuleiro parte da planície alagada, cachoeiras, nascentes do riacho e toda a encosta do maciço do Ribeirão. A parte marinha faz parte da APA da Baleia Franca, da qual a Amopran faz parte do Conselho Consultivo. A Floram é o órgão executor da ação demolitória.
(Notícias do Dia, 09/04/2014)
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