Dalmo Vieira Filho compara a cidade, em diversos exemplos, como um organismo vivo. Às vezes a chama de artefato cultural. Defende pedestres, ciclovias e transporte coletivo. Quer Florianópolis como a capital com maior área verde urbana do Brasil, preservando costas e mangues. É difícil saber se as ideias do superintendente do Ipuf (Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis) e secretário municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano darão certo. Mas uma coisa já parece certa: as ideias mudaram.
O Centro de Florianópolis começou a ser usado em momentos que estavam vazios e surgiram as ciclovias de domingo. Agora há grandes desafios pela frente, como o Plano Diretor e um sistema de transporte coletivo circular.
Nascido em Curitiba, Dalmo é especialista em conservação e restauro de sítios e monumentos históricos. Foi arquiteto do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), onde se tornou superintendente regional. É professor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Nesta entrevista, Dalmo fala sobre projetos, desafios e o que espera para Florianópolis.
O senhor sempre falava em humanização do Centro. Os projetos Viva a Cidade e Viva a Noite têm relação com isso? O que mais vem pela frente?
Na verdade é humanização da cidade. Ela precisa começar pelo Centro porque é uma área da cidade que serve a todos. Se fôssemos fazer uma comparação com uma moradia, o Centro seria nossa sala de estar, onde recebemos amigos, nos encontramos, onde celebramos. O começo pelo Centro é simbólico. Mas a ideia é que a humanização possa ser feita em todos os lugares do município, com o conceito de centralidade. Se reforçarmos o Centro, aproximamos as pessoas e diminuímos a necessidade de deslocamentos. O Viva a Cidade e o Viva a Noite devem se refletir em todos os setores.
As ciclovias de domingo também foram elogiadas. Quais outros projetos para as ciclovias, principalmente como meio de transporte?
Temos duas estratégias para ciclovias e ciclofaixas. A primeira é dar mais coesão, mais confiabilidade às estruturas na área central. Faltam trechos de conexão, sinalização. A segunda é as ciclovias permanentes na bacia do Itacorubi, interligando UFSC e Udesc. É uma área plana, com problemas de trânsito e com uma faixa etária pré-disposta a usar a bicicleta. Do ponto de vista das ciclovias fixas, essas são as duas apostas. Isso não quer dizer que não se trabalhe em todo o município. Há ciclovia na Lagoa da Conceição, no Campeche, em Jurerê. É preciso que isso se reflita em todo o município.
E quanto às ciclovias de lazer?
Paralelamente às ciclovias do cotidiano, como podemos chamá-las, temos as ciclovias de domingo. Começamos pelo Continente, do aterro até as pedras de Itaguaçu. O próximo passo será a qualificação da travessia da ponte, ligando com a avenida Beira-mar Norte para, depois, ligar com Santo Antônio de Lisboa. O interessante aqui é que foi criado um conceito. Não é suficiente só pedalar em Florianópolis, tem que pedalar no paraíso, em um lugar bonito e confortável. Começou com cinco quilômetros. Por que Santo Antônio de Lisboa e Itaguaçu? No mundo, as ciclovias tentam ligar pontos importantes, desde pontos que atraem, como shoppings e centros, mas também pontos importantes de lazer, nos fins de semana. Conectam parques, museus, centos de cultura. Em Florianópolis, achamos que ligar Santo Antônio, um destino natural, às pedras de Itaguaçu, passando por toda a orla da Ilha e do Continente, teremos uma estrutura sólida para penetrar o interior.
O senhor falou, no começo da gestão de dois projetos: o Plano Integrado e das Linhas Circulares de transporte coletivo, que seriam apresentados no primeiro semestre. Como eles estão?
Na verdade, eles foram apresentados. A gente tem discutido o Plano Integrado, principalmente, junto com o Plano Diretor, que é uma urbanização do território que precisa conviver com, por exemplo, as expectativas das áreas que vão ser mais ou menos adensadas, mais ou menos preservadas. O eixo de mobilidade e de lazer é fundamental no desdobramento do Plano Diretor. A gente tem reservado, de certa maneira, a apresentação do projeto do Plano Integrado nesse âmbito do plano. Mas ele já foi apresentado na Acif, CDL, ele tem sido explorado. E tem uma proposta concreta do transporte coletivo circular.
Voltamos à proposta das linhas circulares. Como se encaixa com a licitação do transporte coletivo?
A licitação é perfeitamente coadunada. A licitação garante parâmetros, um preço básico de tarifa, estabelece a modalidade de medição dos serviços, que hoje é por quilômetros e que não deve mais ser. Ela não detalha as linhas. Na realidade, ela dá as diretrizes. Mas a mecânica do processo tem que ser acordado depois da licitação.
Há algum prazo?
A licitação será em breve. As discussões do aperfeiçoamento nós já começamos, envolvendo a Secretaria de Mobilidade, o gabinete do prefeito. Pessoalmente, acredito muito nessa forma. É decisiva para o desenvolvimento do município. Florianópolis não pode jogar as fichas do desenvolvimento futuro no crescimento da estrutura viária. As cidades já não fazem mais isso. Nós fomos a fundo nisso, construímos a Hercílio Luz, duas pontes, aterros. Mas a cada dia o problema está mais sério. O mundo percebeu que não é alargando o sistema viário e alargando vias que se resolve o problema.
O senhor fala em Florianópolis ter a maior área verde urbana do Brasil e em proteger mangues e encostas. Parece ser a coisa mais difícil. Como se faz isso?
Sem dúvida é uma das coisas mais difíceis. Se consegue com uma política objetiva, séria e com pactuação. Conter a ocupação dos morros não é só um caso de polícia. O que se está buscando fazer? Ir à comunidade, considerar que não vai haver a retirada das pessoas que moram ali, muitas que estão há muitos anos. Pelo contrário, vai querer se qualificar, com acessos mais confortáveis, com áreas de lazer, dotar as áreas, quando não houver risco, ou quando não for áreas de preservação. A gente tem que qualificar o lugar. Essa qualificação pode incidir também sobre a valorização da paisagem. O que não dá é um crescimento indefinido, que a cada ação dessa corresponda a mais de 50 famílias. Aí nos estaremos jogando no fundo, na degradação da paisagem. Essa ação tem focos em atuar com as comunidades, aprimorar a fiscalização e executar projetos alternativos de qualificação das moradias.
O senhor participou do que se chamou de farra dos alvarás. Houve alguma mudança na posição do Ipuf?
Não mudou nem um milímetro. Em alguns processos os interessados simplesmente desistiram. Principalmente os aprovados nos últimos dias (da gestão anterior). Na grande maioria, ocorreram negociações e adaptações. Os projetos foram revistos. Quase todos, cerca de 90%, se adequaram, muitos deles diminuindo os gabaritos, fazendo outras obras viárias. A grande maioria pode ser executada em condições mais cuidadosas.
Houve recomendação para suspender 33 alvarás. Como estão esses casos?
Acredito que pelo menos 20 se adequaram, quase todos diminuindo o gabarito ou mudando características dos projetos. Acrescentando áreas verdes, acrescentando estacionamentos para caminhões, no fundo diminuindo os principais conflitos de vizinhança. Esse foi o fator diferencial. O Plano Diretor foi mudado tantas vezes que as conivências foram inseridas no plano. O que faltou? Quando se recebe o projeto é analisar como ele pode ser aprovado em seus lotes. Mas o plano também obriga uma reflexão de como ele se relaciona com a região. Isso não tinha sido feito em nenhum caso. As recomendações foram no sentido de mitigar conflitos.
E na Ponta do Coral, mudou algo?
Nada. A prefeitura tornou mais do que explícito sua posição. Quem podia pedir o aterro em área pública era o município. O município oficializou não ter interesse.
O empreendimento não pensou em reduzir o tamanho do projeto?
Formalmente não.
O senhor já falou na ponte Hercílio Luz como uma forma de ligar a cidade com o mar.
Acho emblemática, não só para o passado, mas para o futuro da cidade. É importante não considerar a ponte só como uma grande façanha do passado e que enalteça o valor da obra. Uma das grandes questões de fundo do patrimônio é inseri-lo nos processos do presente e do futuro. O que nós pensamos: a ponte Hercílio Luz foi cartão-postal e o principal meio de ligação Ilha-Continente por décadas. Quando ela for reinserida na vida das pessoas, a gente pensa que ela pode continuar como cartão-postal, mas um espaço preparado para que as pessoas vivenciem a beleza da ponte, mas sem deixar de ter um papel para o qual foi construída: ser uma ponte. Mas quase 80 anos após sua construção, ela não pode reproduzir o mesmo modelo, transportando veículos particulares. O que a prefeitura vem estudando é que a ponte sirva preferencialmente para coletivos.
A comissão recomendou que a ponte fosse usada para todos os veículos.
Não é uma recomendação conclusiva. Acho até razoável começar por aí. Mas não pode ser coletivos comuns. Seria quase inócuo. Teriam que ser ônibus mais preparados para conviver no Centro da cidade, mais silenciosos, de fácil acesso, que pudesse trafegar dividindo os espaços com os transeuntes. Teríamos que dar um passo também nos equipamentos e da própria concepção do sistema. A ponte seria um símbolo, vivenciada de forma intensa. Vemos ali onde a cidade pode celebrar a relação com o mar, como no entorno da Hercílio Luz. E inseri-la na questão da mobilidade.
Como o senhor vê a cidade daqui a dez anos?
Vejo melhor. Acho que não são só as ações do município, mas a preocupação das pessoas com a cidade. A gente vê uma ânsia reprimida de vivenciar a cidade. Verificamos isso nas pessoas indo às feiras de sábado, pedalando nas ciclovias de domingo, a reação que isso ocasionou é demonstrativo de que temos latente esse sentido de fazer da cidade nosso cenário de vida, nossos lugares de convívio. Isso é urbanismo atual: que se preocupa com as vias, as vias expressas, com o transporte coletivo, mas que não deixa de se preocupar com a alma da cidade, tanto com os fatores materiais como imateriais, tanto os aspectos funcionais como os humanísticos desse grande artefato cultural que é a cidade.
(ND, 25/08/2013)