Artigo de Vinícius Lummertz, secretário nacional de políticas de Turismo (DC, 09/05/2013)
Outro dia ouvi do jornalista Cacau Menezes: “Precisamos proteger a nossa cidade”. Estou ouvindo até agora. É o que queremos, mas como fazê-lo? Na era medieval era mais simples: construíam-se muralhas com fossos e jacarés. O inimigo era um possível invasor, de outra tribo, outro reino, outro povo. Não vinha pela CVC, nem pela Azul mas também não tinha fins pacíficos. A ameaça agora, convencionou-se pensar, é o crescimento. Quanto à construção de muralhas, também não haveria hoje como obter as licenças ambientais. Nem para os jacarés. Fim de papo, amarelo.
Proteger como? Uma hipótese seria travar o crescimento; a outra seria planejá-lo, ordená-lo – mas sob quais critérios? Sociedades em cidades modernas são sistemas complexos. Convívios urbanos em sistemas democráticos requerem muita compreensão sobre interesses difusos, jogos políticos, correntes ideológicas, condições econômicas, hábitos e costumes e, sobretudo, expectativas. Nossa cidade tem tudo isso em profusão. No final, trata-se também de proteger a cidade de nós mesmos.
Florianópolis é reconhecida como a melhor cidade do Brasil para viver. No final das contas, seria isso o que queremos proteger. Tal missão contém um paradoxo, visto que, quanto melhor for a cidade, mais gente virá. E o que podem fazer nossos governantes e os muitos produtores da cidade? Podemos fazer escolhas, tratando os problemas superficialmente ou em profundidade. Atualmente o tratamento tende a ser superficial e “político”, incluindo a sobrevivência dos próprios agentes. Um tratamento profundo requereria dois importantes conjuntos de pré-condições: 1) o entendimento sobre premissas; e 2) o diálogo genuíno com interlocutores realmente válidos. Seria substituir o proselitismo, a guerrilha ideológica e o jogo para a plateia por um diálogo mais especializado, mais sério e consequente.
Para alinhar premissas, devemos corrigir desvios de percepção. O primeiro desvio está no entendimento implícito por seus moradores de que Florianópolis deva viver apenas para si. Isso é possível imaginar hoje em Governador Celso Ramos, Garopaba e outras cidades que não são capitais. O papel de Capital é indissociável de liderança e de metrópole perante o resto do Estado, do Brasil e do mundo. Pode Santa Catarina querer se desenvolver e Florianópolis negar-se?
O segundo desvio de percepção está na vocação turística e cultural. Com base na sua natureza e seus charmes, Floripa seduz e encanta – porém vive uma relação esquizofrênica com os quase R$ 2 bilhões de receita anual que obtém com o turismo e que ajudaram a transformar nossa cidade na maior renda domiciliar entre as capitais do Brasil. A cidade que mais enriqueceu nos últimos 10 anos, segundo o IBGE. Queremos a receita mas não queremos o turista? Sobre a cultura, basta refletir: de quando data o nosso maior equipamento cultural, o CIC, senão da década de 80, quando a cidade e o Estado eram economias pequenas?
O terceiro desvio de percepção é sobre o desenvolvimento das vocações para a tecnologia e a indústria criativa – a chamada cidade do conhecimento, que tem no Sapiens Parque seu símbolo mais eloquente. Os setores tecnológicos produzem mais de R$ 1 bi em receitas anuais, bons salários. Cidade capital, com grandes reservas ambientais, com turismo, universidades, centros tecnológicos, foram os pontos que somados fizeram nossa cidade constar entre as 10 mais dinâmicas do planeta pelo MIT e Newsweek – e como uma das primeiras a tramitar como Biosfera Urbana na Unesco.
O que fazer? Ignorar que somos Capital? Travar o turismo, travar a tecnologia, como se atrasou e atazanou o Sapiens? Pode a Florianópolis das décadas de 1970/80 desempenhar o papel de capital de Santa Catarina de 2030? A bem da verdade, nossa cidade era então relativamente pobre. Foram bons tempos para alguns, mas o relógio não anda para trás. Naquele período o comércio era simples: só havia dinheiro do dia 5 ao dia 10, proveniente dos salários do setor público.
Contraditoriamente, e por conta da falta de diálogo, Florianópolis hoje é uma cidade fora da lei. Mais de 60% das residências e empresas estão em situação ilegal. O novo plano diretor não foi aprovado e as melhores cabeças da cidade não participam do debate. Afinal, quem conhece o trabalho liderado por Ruben Pecci, do Instituto Cepa, argentino e um dos maiores arquitetos sul-americanos? Ou o Vida e Otium, do Instituto Dias Velho, liderado por brilhantes arquitetos da UFSC?
O que fazer? Tentar mudar as estruturas ou sobreviver a elas, contra o relógio? É possível mudar a realidade sem mudar as estruturas? É possível, desde que se caminhe para um diálogo de alto nível, como o proposto pela RBS, “Floripa, te quero bem”, que teve Guga como arauto. Teve consistência, neutralidade e retirou o ranço das discussões ao fornecer transparência às ideias. Uma das conclusões da proposta foi que a prefeitura deveria ter um plano de metas. É incrível que esse instrumento elementar de gestão ainda não exista em nossa cidade.
A criação de um diálogo genuíno em Florianópolis – única saída para o impasse – passa pela contínua qualificação do debate e sua inserção na mídia. Atualmente passa-se ao largo das questões econômicas e das vocações. Discute-se a cidade como se o seu financiamento e sua sustentabilidade econômica não fossem relevantes. De onde virão os impostos? Ao que se dedicarão nossos filhos e netos?
Sabemos já que os limites ao crescimento econômico se aproximam no modelo atual; quer pelas especificidades territoriais ou ambientais, sobretudo na construção civil, para aonde deságua toda a lógica econômica. A construção civil ainda é o motor que responde às outras atividades econômicas, mas seu ciclo indica um deslocamento para a região continental, por motivos óbvios.
A dinâmica das novas vocações precisa ser absorvida. Florianópolis é uma cidade de eventos, com potencial náutico e de parques naturais e precisa de equipamentos qualificados para amparar o turismo, a cidade-capital e a cidade do conhecimento. Tudo isto substituirá a construção civil no médio/longo prazo.
O Desenvolvimento Sustentável, termo criado em 1987 pela Comissão Brundtland, preconizava uma nova centralidade para o meio ambiente. No entanto, incluiu-se de forma mais explícita a relação com o econômico e o social, e não a sua obliteração – visão deformada que chegou ao Brasil pelas mãos de um tipo de ativismo que perdera a bandeira do socialismo real, o comunismo soviético.
Como na América Latina as ideias vergam ao sol, transfigurou-se em realismo fantástico a sustentabilidade em anticapitalismo. Claude Lévi-Strauss, o maior nome da antropologia do século 20, que escrevera Tristes Trópicos, na década de 1960, após viagem pelo Brasil, – certa vez disse sobre o país que conhecia bem: “O Brasil corre o risco de envelhecer sem jamais ter amadurecido”.
Florianópolis é reconhecida como a melhor cidade do Brasil para viver. No final das contas, seria isso o que queremos proteger. Tal missão contém um paradoxo, visto que quanto melhor for a cidade, mais gente virá.