O tradicional uso da terra para a produção do carvão vegetal em Biguaçu, na Grande Florianópolis, está em xeque. A prática da atividade artesanal, que resulta do corte e da queima de madeira, é uma das maiores fontes de renda da agricultura familiar na região. Mas também é alvo da legislação ambiental, que proíbe a supressão de vegetação nativa, ou seja, desmatamento.
Para conservar as florestas, melhorar a qualidade de vida dos pequenos produtores rurais e valorizar o produto final, seis propriedades do município fazem parte de uma pesquisa modelo, desenvolvida pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) e prefeitura.
O caminho para tornar o produto ecologicamente correto é longo, mesmo com o apoio do projeto Nosso Carvão. As terras dos agricultores, em sua maioria, estão irregulares. Muitas foram repassadas sem regularização fundiária, que consiste na demarcação do terreno dentro de procedimentos jurídicos e ambientais.
Com a pesquisa, em andamento desde 2009, essas propriedades estão sendo regulamentadas e os agricultores carvoeiros podem ter a oportunidade da atividade ser legalizada. Ainda assim, a prática e dessa atividade, vista como clandestina, está ameaçado e pode até ser extinto.
Da mata para o mercado
Quem aprecia um bom churrasco sabe que a qualidade do carvão faz a diferença. Mas até a embalagem chegar ao supermercado, há um processo longo e até raro, como ocorre em Biguaçu.
A técnica, detida por um número reduzido de colonos é minuciosa. Primeiro é preciso conhecer bem a floresta, saber qual madeira é boa, qual seu poder de queima. Os produtores precisam, ainda, dominar o forno de tijolos, construído no meio da mata, em formato iglu — parecido com aqueles feitos por esquimós.
Romão Boaventura Cardoso, de 46 anos, faz parte de pouco mais de 30% das famílias de agricultores que ainda produzem carvão com brilho nos olhos, ofuscado em alguns momentos pela fumaça da lenha quando pega fogo.
Para encher o forno de madeira, o agricultor gasta em média uma hora. Não pode sobrar um espaço sequer. Depois, vai mais uma hora para fazer a boca do local, que abriga inúmeras madeiras — a porta do iglu — com tijolo e barro.
Também não pode ficar nenhuma fresta, para que o ar não comprometa a queima da lenha. Ainda na porta, é deixado somente um buraco, na parte debaixo, para que o colono possa colocar fogo na madeira. Só então, ele deita na terra, estica o braço e enfia o pedaço de pau com esponja em chamas lá dentro.
Em alguns minutos, a fumaça dá o sinal de que o processo para a produção do carvão está a caminho. A partir desse momento, ele é monitorado por mais uma hora, até que atinja o ponto (a temperatura chega a 1.000ºC), que passa por estágios coloridos da fumaça. Ela começa branca, se torna marrom e, finalmente, azul, da cor do céu, afirma o colono, que habita um terreno de 29 hectares, que foi herdado por escravos.
Três dias para queimar, quatro para esfriar
O trabalho penoso continua. Mais uma hora para fechar buracos — chamados também de respiros — deixados entre as três chaminés para que o ar entre e a fumaça saia. Toda a madeira colocada dentro do forno demora, em média, mais dois dias para queimar, e outros três ou quatro para esfriar. Cardoso fica atento. Ele diz ser necessário cuidar do forno como se fosse uma criança. Tudo para não perder o ponto da lenha.
Uma semana depois, são mais três horas para retirar o carvão, que agora está pronto para o consumo. Um forno com cerca de oito metros cúbicos, rende em torno de cem sacos de cimento cheios de carvão, entregues a um atravessador, que repassa o produto ao comércio.
Plantar é prioridade
O carvão é importante para a sobrevivência dos pequenos agricultores, apesar de não haver dados oficiais sobre a produção em Biguaçu. Mas a fabricação não é a atividade prioritária dos colonos, que produzem ainda farinha, açúcar, entre outros alimentos.
O produtor rural derruba a floresta sem retirar as árvores por inteiro — a raiz permanece. É o sistema conhecido como roça-de-toco, ou coivara. A lenha nativa é boa para um carvão de qualidade — o que não aconteceria com o eucalipto, por exemplo.
Em volta dos tocos, eles plantam mandioca, feijão, milho ou batata-doce. Usam essa roça por uns quatro anos. Depois, a deixam regenerar para que o solo se fortifique novamente. Esse processo leva em torno de 10 ou 12 anos.
Enquanto esse terreno descana, eles pedem novamente autorização ambiental — hoje concedida pela Fundação Municipal do Meio Ambiente de Biguaçu (Famabi) — para fazerem lavoura em outro pedaço de terra.
Esse sistema, explica o agrônomo Alfredo Celso Fantini, doutor em Ciências Florestais e coordenador do projeto Nosso Carvão, contempla um processo de regeneração, chamado ainda de sucessão florestal, no qual permite o aparecimento de novas espécies.
— O carvão é parte de um sistema de uso da terra, pois desde os primórdios precisava-se da lenha para produzir farinha. É uma forma de uso, não é desmatamento, nem sistema de produção integrado, nem atividade isolada. É uma atividade importante que está escondida, às margens da clandestinidade.
Destruição x trabalho
O casal Adelmo Crispim Pereira, 45 anos, e Maria Iracema, 43 anos, afirma que desde o início da pesquisa e da criação da Famabi, passou a trabalhar mais sossegado, sem medo. Dona Maria, filha de agricultor, conta que já ajudava o pai na roça com sete anos, e diz não saber fazer outra coisa.
— A gente não tá destruindo, está trabalhando. Vivemos disso. Não temos estudo para viver de outra maneira. Tem pessoal saindo da roça porque foi multado e não tem dinheiro para pagar. Em vez de multar, precisam nos ensinar a preservar, a fazer o certo. Trabalhamos para comer.
Menos desmatamento
Após a criação da Famabi, em 2009, o cenário ambiental melhorou, segundo a diretora operacional, Andréa Felipe.
— Havia muito desmatamento e outras infrações ambientais. Hoje, há vários pedidos de autorização para corte de vegetação ou regularização de fornos. Antes, nos viam somente como fiscalizadores, mas agora somos parceiros — afirma.
Forno menos penoso e mais limpo
A partir da próxima semana, um forno alternativo começará a ser montado pela equipe de engenharia que participa do Projeto Nosso Carvão. Ele deve facilitar o processo de transformação da madeira em carvão, reduzir a insalubridade, o esforço da atividade e aumentar o rendimento do trabalho. Segundo Fantini, da UFSC, a intenção é que o protótipo entre em operação até junho.
O equipamento terá uma caçamba, onde a lenha poderá ser carregada e descarregada, sem que o agricultor entre no forno.
O modelo, desenvolvido pela Universidade Federal de Viçosa, que fica em Minas Gerais, será readaptado conforme a necessidade dos agricultores.
Fantini explica ainda que, como o processo de carbonização será diferente, o tempo de fabricação do carvão poderá ser reduzido, já que o colono não precisará esperar cinco dias para o produto esfriar.
Em paralelo ao projeto da UFSC, o Centro de Socioeconomia (Cepa) da Epagri está fazendo um diagnóstico socioeconômico da produção do carvão, da sua importância na renda das famílias rurais e da análise de estratégias de mercado. O objetivo do estudo é agregar valor ao carvão, à farinha e ao aipim, todos produzidos no sistema roça de toco.
Contrapontos:
— A Fundação do Meio Ambiente (Fatma), órgão estadual, apoia o Projeto Nosso Carvão, que objetiva substituir o sistema extrativista desenvolvido em Biguaçu por agroecológico. Segundo o presidente da instituição, Murilo Flores, com a pesquisa, é possível ser criada uma instrução normativa no Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) que regulamente a situação dos agricultores produtores de carvão.
— O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Biguaçu, Leonídeo Zimmermann, enfatiza que a produção de carvão é necessária para agregar o sustento das famílias. Conta ainda que é contra o agricultor sair da propriedade por não ter mais direito de trabalhar.
— O corte de vegetação nativa tem que ser controlado, mas o colono precisa ter o direito de sobreviver. O carvão é bom tanto para o homem do campo quanto para o da cidade.
— A prefeitura prevê até julho início do processo de regularização das seis propriedades onde é feita a pesquisa. Conforme o secretário de Agricultura do município, Elson João da Silva, o dinheiro, já disponível, será repassado ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Biguaçu, que ficará responsável pela contratação da consultoria jurídica e ambiental. O grupo irá definir as áreas destinadas às reservas legais e à preservação permanente dentro das propriedades.
(DC, 06/04/2012)
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