O cinza vem do chão. Mata o verde e vai até o céu, para onde apontam os prédios cada vez mais altos. Concreto e vidros, rodas e motores, fumaça e barulho. E gente. Parece mesmo haver muita gente para pouco espaço. Até quando as metrópoles agüentam? Agora, talvez um pouco mais.
A menos de dois meses do prazo limite para a aprovação dos planos diretores determinados pelo Estatuto das Cidades – 10 de outubro – as grandes e médias cidades catarinenses e brasileiras preparam mudanças essenciais em políticas públicas. São os planos diretores, com ênfase no planejamento urbano. E daí, para assuntos que atingem tanto o grande empresário do ramo imobiliário quanto o morador da palafita sem número, numa ruela qualquer.
Planos diretores não são novidade. Cidades como Florianópolis, Joinville, Blumenau, Itajaí, Criciúma e Chapecó já possuem. Todos estão em fase final de remodelação. A principal mudança é a maneira como são elaborados. A participação popular e democrática é condição sine qua non para o bom funcionamento dos planos. Líderes comunitários participam de várias reuniões, e elegem as prioridades para a comunidade, e não para o governo.
Em Blumenau, por exemplo, foram 32 reuniões nos bairros. Esses encontros geraram oficinas temáticas, que aí sim elaboraram propostas que agora precisam da aprovação da Câmara de Vereadores para virarem lei. São temas interligados como saúde, educação, transporte, coleta de lixo, meio ambiente e segurança pública. O medo da violência, aliás, foi o assunto mais discutido na maior cidade do Vale do Itajaí, junto com a necessidade creches. “Acabou aquela história de audiência pública em que o poder público chegava com um projeto pronto e a comunidade só dizia sim ou não. Houve uma inversão de prioridades. Antes, as leis eram empurradas de cima para baixo para os cidadãos. Agora, ele participa ativamente”, afirma o professor e urbanista Lino Fernando Bragança Peres, que participa do processo em Florianópolis.
E o melhor, além de ter a oportunidade, o cidadão está, sim, interagindo. “Há grupos engajados e interessados no desenvolvimento sustentável das cidades, em Florianópolis, em Blumenau, em Joinville. A mobilização foi e é fundamental para que os grupos econômicos, especialmente do ramo imobiliário, percam o poder de barganha que exercem sobre as Câmaras de Vereadores”, esclarece o professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Essa mobilização chegou também aos pequenos municípios que precisam fazer planos diretores. O professor da Universidade Regional de Blumenau (Furb), Luiz Alberto de Souza, orienta um consórcio de 13 cidades no Médio Vale do Itajaí, e diz que a participação é especialmente qualitativa. “Quem vem está realmente interessado”, afirma. O modelo brasileiro é considerado moderno. Outros países da América do Sul, como a Argentina, estudam a implantação de planos diretores semelhantes.
Projeto aprovado após 11 anos
O professor e urbanista Lino Bragança Peres comemora o Estatuto das Cidades, que se arrastou por 11 anos no Congresso. Outra vitória, segundo ele, é a inclusão do que chama de “cidade invisível” nos planos diretores.
De acordo com Lino, o modelo de planejamento urbano existente hoje não basta. “Os modernistas projetaram espaços ideais, amplos, como Brasília (DF). Mas a ocupação nas áreas não planejadas, nas periferias, já é maior que dentro das cidades”, explica. Da cidade informal fazem parte, por exemplo, as comunidades como os morros do Mocotó ou do Horácio, na Capital. Elas são chamadas de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis). A inclusão dessas áreas nos planos diretores é um dos grandes trunfos do Estatuto das Cidades, aprovado em 2001.”As políticas públicas fecharam os olhos durante anos para essas áreas. Não só na questão de habitação, mas na infra-estrutura básica de saúde e educação. É o primeiro passo para profundas mudanças” diz o professor da UFSC.
A legalização de áreas invadidas e terrenos é delicada e exigirá também estudos coletivos psicossociais e ambientais, entre outros. Exemplo do que dá errado: a relocação não planejada de famílias de uma área para outra, “com moradia digna”. Sem trabalho, muitos acabam voltando para os locais de origem. Os que ficam podem ser motivo de conflito na “nova” comunidade.
Combate à especulação imobiliária
No “cabo-de-guerra” da aprovação do Estatuto das Cidades, um quesito atacou um problema antigo, e difícil de ser combatido. Os artigos 5º e 6º (Seção II) e 7º (Seção III) combatem especificamente a especulação imobiliária. Na prática, esses artigos desvinculam o direito de propriedade do direito de construção. Ou seja: aqueles terrenos “baldios” ou subaproveitados em áreas nobres das metrópoles que ficam estagnados dez ou 20 anos para ganharem valor venal agora têm legislação específica.
Imóveis subutilizados são os que têm aproveitamento inferior ao mínimo estabelecido pelos planos diretores – número de andares e área construída.
Do contrário, os sobreutilizados são os que extrapolam os limites. Para os dois casos, haverá “punição” financeira. Parcelamento compulsório para os “sub” e outorga onerosa para os
“sobre”. Há, também, o mecanismo do IPTU progressivo em que o proprietário é submetido, consecutivamente, a reajustes do IPTU. São mecanismos para frear o crescimento desordenado.
Inversão de prioridades no zoneamento
Ao observar os projetos de lei aprovados por uma Câmara de Vereadores, um leigo poderia não entender o porquê daquelas propostas cheias de plantas da cidade. São as tais leis de zoneamento. Através delas, o seu bairro, que era apenas de casas, começava a ter prédios de três ou quatro andares, depois sete ou oito. Isso ocorria, muitas vezes, por lobby imobiliário. Com os novos planos, isso deixa de existir. Para haver mudanças na lei de zoneamento, a comunidade passa a ser consultada.
Outra mudança importante é a inclusão dos Estudos de Impacto de Vizinhança (EIV). A construção de um shopping center ou de um prédio, por exemplo, deverá passar por estudos específicos de trânsito e disponibilidade de luz natural nas edificações ao redor, entre outros. “Um shopping pode gerar mil empregos. Mas a que custo? Isso precisa ser discutido pela sociedade”, exemplifica o professor Lino Bragança.
(Rodrigo Stüpp, A Notícia, 28/08/2006)
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