Da Coluna de Carlos Damião (ND, 20/01/2018)
João da Cruz e Sousa (1861-1898), o Cisne Negro, não merecia tanta humilhação. Pela relevância de seu nome e de sua obra, o principal poeta do simbolismo brasileiro – e um dos principais dessa escola no mundo – deveria receber um tratamento digno e respeitoso. Mas o que se vê no memorial dedicado ao escritor, onde estão preservados seus restos mortais, é mais um símbolo do descaso, do desperdício de dinheiro público e da falta de zelo com a memória do nosso maior escritor.
Depredado, praticamente se desmanchando, o Memorial Cruz e Sousa vai ganhar uma solução nos próximos meses, depois de uma longa batalha judicial entre o Estado e a empresa que executou o projeto. Com decisão favorável, o Estado vai retomar o espaço para que os serviços sejam consertados ou refeitos – quase tudo, já que a área foi interditada por causa dos riscos de desabamento. O processo está sendo encaminhado no âmbito da Fundação Catarinense de Cultura, que aguarda apenas a liberação dos trabalhos por parte do Comitê Gestor do Governo do Estado.
Para entender o caso é preciso recuar ao ano de 2009, quando o governador Luiz Henrique da Silveira (PMDB) decidiu construir uma pequena edificação nos jardins do Palácio Cruz e Sousa, como forma de homenagear o poeta, manter viva sua memória e sua obra. Foi realizada uma licitação, vencida pela empresa Múltipla Engenharia e Consultoria. Concluídas as obras, o memorial foi inaugurado em 6 de maio de 2010 pelo governador Leonel Pavan (PSDB), uma vez que Luiz Henrique renunciara ao cargo para disputar a eleição para o Senado naquele ano. Por ironia, Pavan é o atual secretário de Estado do Turismo, Esporte e Cultura, órgão ao qual está subordinada a FCC e o próprio memorial.
Espaço cultural no Centro
Pelo projeto original do governo do Estado, o memorial deveria abrigar os restos mortais do poeta – trasladados do Rio de Janeiro em 2007– além de dispor de uma cafeteria e uma biblioteca, com entrada franca para os visitantes. Na prática, seria mais um espaço cultural da região central de Florianópolis, anexo ao Museu Histórico de Santa Catarina, que funciona no palácio.
Semanas depois de inaugurado começaram os problemas, revelando a irresponsabilidade da execução da obra a toque de caixa. O governo responsabilizou a empresa, mas enfrentou resistência dos seus dirigentes, que alegavam não ter recebido o total dos valores contratados. Em valores históricos, a obra mal feita custou R$ 177 mil aos cofres públicos.
Mesmo falida, a Múltipla Engenharia continuou discutindo o caso na Justiça. Além de se defender, o Estado ainda solicitou ao Judiciário que autorizasse a contratação de uma nova empresa, assegurando recursos orçamentários para a recuperação do espaço (o que de fato ocorreu).
PASSO A PASSO
Um laudo do Deinfra (Departamento Estadual de Infraestrutura), logo após a inauguração, em 2010, apontou a existência de problemas estruturais que colocariam em risco a segurança dos visitantes. “Aponto a necessidade de inviabilizar o uso devido ao mau estado das portas de blindex, cujos trilhos de correr cederam e oferecem riscos de cair. Havia também problemas com o assoalho e de vazamentos e infiltrações”, disse o engenheiro Paulo Roberto Gasparino da Silva à época.
A Fundação Catarinense de Cultura chegou a anunciar, ainda em 2010, que o espaço seria rapidamente recuperado e reaberto no mesmo ano. Em 2011 houve nova promessa, inclusive com mês já determinado para a reabertura: novembro.
Ao longo de 2010 e 2011 a Múltipla Engenharia foi notificada várias vezes pela FCC para que fizesse os reparos. Mas ignorou as notificações e recorreu à Justiça.
A obra tinha garantia de cinco anos, mas esse prazo venceu em 2015, quando a questão já tramitava na Justiça.
O proprietário da empresa, Cristiano Gil Ortiz, alegou que havia disparidades entre o projeto arquitetônico e o estrutural, além da escolha da área, nos jardins, ter sido tecnicamente inadequada. Observou ao ND, em 2011, que havia alertado a FCC sobre esses problemas, mas que mandaram “tocar a obra”.
Cristiano Gil Ortiz informou ao ND também que foram pedidos serviços a mais, durante as obras, não incluídos no contrato. Foram acertos “de boca”, sem documentação. Esses serviços extras teriam motivado seu recurso à Justiça.
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