A abordagem sobre as causas das enchentes no Vale do Itajaí, em um veículo da grande imprensa, ficou restrita a explicações científicas sobre o comportamento meteorológico atípico da semana de chuvas das duas últimas semanas de novembro e o recorte geográfico da região. Análises sobre a responsabilidade de governos quanto à não implementação de planos já previstos em lei foram apenas mencionadas ou ficaram para trás, como se tudo que ocorreu tenha sido apenas uma anomalia da natureza.
Independentemente de ter ocorrido um fenômeno atípico, com chuvas sem precedentes em curtíssimo tempo, deixando a terra encharcada e lisa como manteiga e arrastando consigo todo tipo de estrutura, a forma de ocupação humana é uma variável que não pode ser ignorada nesse conjunto de fatos. Nos municípios litorâneos, mais suscetíveis à combinação de fatores naturais e antópicos, deveriam ser colocados em prática planos de gerenciamento costeiro. Uma lei federal de 1988 (Lei 7.661), portanto com 20 anos, prevê tais planos, bem como um decreto que os regulamenta há quatro (Decreto 5.300/2004). União, Estados e municípios, todos são responsáveis pelo Gerenciamento Costeiro.
Mesmo assim, é flagrante a falta de planejamento e, pior que isto, a não implementação de planos que, embora muito bem elaborados, acabam engavetados por administradores.
Isto está acontecendo agora. Nesta sexta-feira (05/12), encerra-se o prazo de uma licitação da Secretaria de Planejamento e Gestão de Santa Catarina para a contratação de um plano de zoneamento em cinco regiões do litoral do Estado. O edital foi aberto em 17 de novembro, pouco antes das chuvas torrenciais. O objetivo da licitação, no valor total de R$ 500 mil – R$ 100 mil para cada região – é o desenvolvimento de um diagnóstico socioambiental e um plano de gerenciamento costeiro. “Mas nós já fizemos este zoneamento há sete anos”, atesta o oceanógrafo e doutor em Ecologia Marcus Polette, da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Para ele, “o governo está reinventando a roda”. Segundo o pesquisador, o zoneamento ecológico-econômico de todo o litoral foi realizado em uma parceria de cinco universidades catarinenses (Univille, de Joinville; Univali, de Itajaí; Unisul e Unesc, do Sul do Estado; e Universidade Federal – UFSC).
“Temos toda a documentação entregue às autoridades. Na época em que a Univali participou da elaboração do plano de gerenciamento costeiro, foram investidos mais ou menos R$ 100 mil em todo o trabalho”, lembra. Um dos resultados é o portal Observatório do Litoral Catarinense, em que podem ser encontrados dados e informações de pesquisadores catarinenses sobre as regiões costeiras do Estado.
Má administração
Polette considera o edital como mau uso de dinheiro público. “Entregamos uma representação na Procuradoria-Geral da República para suspender esta licitação porque se trata de gasto indevido de recursos públicos. Enviamos junto cópia de todo o trabalho que já fizemos. Argumentamos que sequer implementaram o plano que elaboramos. O pior de tudo é que, no edital, pedem o diagnóstico socioambiental em quatro meses, o zoneamento em cinco, e o plano de gestão em mais cinco meses – ou seja, todo o plano em um pouco mais de um ano.
Isto é um indicativo de que vão gastar recursos públicos para fazer algo sem consistência, pois não há tempo hábil para fazer tudo isto em tão pouco tempo”, analisa. “Também estamos preocupados com a qualidade deste trabalho, e por quem será elaborado, se por uma empresa ou instituição sem compromisso com a região. Na minha opinião, o governo do Estado deveria entregar este diagnóstico para pessoas qualificadas das cinco universidades, para aprofundar os estudos já feitos em 2001”, afirma, observando que todos os estudos já realizados estão atualizados. “Estamos na metade de uma legislatura política no Estado, e esse trabalho requerido pelo edital vai terminar em pouco mais de um ano. Quem nos garante que, se mudar o direcionamento político, esse novo zoneamento também não vai se abandonado?”, questiona.
Desleixo
Polette lembra que o contrato para a elaboração do mesmo tipo de zoneamento que está sendo licitado agora foi firmado entre 2000 e 2001, envolvendo a Secretaria de Desenvolvimento Sustentável de Santa Catarina e as universidades. Os levantamentos foram realizados para os municípios do Litoral-Centro-Norte de Santa Catarina – entre eles Navegantes, Itajaí, Camboriú e Balneário Camboriú, que também estão entre os afetados pelas recentes cheias. “Fizemos o zoneamento ecológico-econômico para esta região, para apontarmos prioridades ao governo e estabelecemos um programa de monitoramento.
Tentamos aplicar todos os instrumentos de gerenciamento costeiro. Mas não foi implementado. O Estado deveria ser o implementador, por meio de uma lei que regulamentasse o zoneamento. E os municípios teriam que incorporar a este zoneamento os seus planos diretores, especialmente depois do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001)”, explica.
Segundo o artigo 41 do Estatuto da Cidade, até outubro de 2006 todos os municípios com mais de 20 mil habitantes ou considerados de interesse turístico, entre outros, deveriam ter implementados os seus planos diretores. Os que realizaram esta tarefa e se enquadram na categoria de município litorâneo, no entanto, não levaram em conta o gerenciamento costeiro. “Em Santa Catarina, apenas Itajaí considerou o macrozoneamento, mas não um zoneamento mais localizado, de escala local”, diz o pesquisador. Ele assinala, inclusive, que a Procuradoria-Geral da República, em Itajaí, está entrando com ação para anular o plano diretor da cidade: “Nós verificamos que não há vontade política do governo do Estado em implementar o gerenciamento costeiro. A equipe para isto é pequena. São 36 municípios para atender em 531 quilômetros de litoral. Necessitaria de pelo menos umas dez pessoas, mas não há esse contingente”.
Política esquecida
Em fevereiro deste ano, a bióloga Marinez Eymael Garcia Scherer, diretora técnica da Agência Brasileira de Gerenciamento Costeiro, já havia denunciado o descaso, em todas as esferas governamentais, com a política de gerenciamento costeiro. Os instrumentos até que existem, mas as práticas é que ficam para trás. O mais grave é que são justamente os municípios mais próximos ao litoral os que alavancam o crescimento econômico e os que, contraditoriamente, colocam em risco suas populações, pela ausência de ações coordenadas quanto à ocupação e uso do solo e dos recursos hídricos.
No Ministério do Meio Ambiente, o gerenciamento costeiro, ou “Gerco”, está afunilado no meio de uma hierarquia de secretarias e departamentos. “O gerenciamento costeiro está a cargo do MMA, enquadrado na Secretaria de Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental, que está acima do Departamento de Qualidade Ambiental na Indústria, que por sua vez está acima do Gerenciamento de Qualidade Costeira e do Ar”, explica o oceanógrafo Milton Asmus, da Fundação Universidade de Rio Grande (FURG). Para ele, isto mostra como o Gerco vem se perdendo dentro das prioridades do governo.
Um internauta tenaz, no entanto, consegue encontrar alguns mapas do Gerco que facilmente traduzem, sem muitas palavras, as fragilidades da costa brasileira – áreas com risco de inundação, em graus forte, médio e fraco, estão assinaladas em figuras disponibilizadas no portal do MMA. Lá é possível constatar que toda a tragédia do Vale do Itajaí estava previamente mapeada, com sinal vermelho para municípios como Navegantes, Itajaí e Joinville e ainda para São José, Palhoça e Florianópolis, mais ao sul.
Estudos e mais estudos não faltam. E a implementação? “Há muitas questões políticas envolvidas nisto. Também faltam recursos. Mas não é uma política que tenha recebido atenção”, assinala Asmus. De acordo com ele, mais de 400 municípios são enquadráveis no gerenciamento costeiro, segundo o Decreto 5.300/2004. Contudo, “ele está desprestigado na sua visibilidade”, nota.
Asmus recorda-se da época em que havia muito mais entusiasmo para com o tema: “O movimento pelo gerenciamento costeiro é internacional. Surgiu a partir de uma lei norte-americana, de 1972, mas ganhou força, mesmo, na Rio 92. O capítulo 17 da Agenda 21, fala de aspectos integrados, econômicos, ecológicos e sociais deste tipo de gerenciamento”.
Conforme o oceanógrafo, a legislação enquadra municípios costeiros como aqueles de frente para o mar, bem como os que sofrem influência de baías, a exemplo de Salvador e do Rio de Janeiro. “Há outros municípios que fazem parte da região costeira, desde que definidos pelo Ministério do Meio Ambiente, que é o coordenador do gerenciamento costeiro no país”, explica Asmus. Segundo ele, existe até uma segunda versão do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, o PNGC II.
Contudo, antes mesmo que o MMA tomasse a dianteira deste processo, existia já a Comissão Interministerial para Recursos do Mar (CIRME).
“Ela é secretariada pela Marinha. Nela está o MMA, com maior expressão, e foi no âmbito desta comissão que se criou, em 1987, o Plano Gerco. Daí surgiu a Lei 7661/88”, esclarece o pesquisador da FURG. Ele diz ainda que, em 1997, uma resolução do CIRME criou a segunda versão do Gerco, por meio da Resolução 05/97. “Assim, o Decreto 5.300, de 07 de dezembro de 2004, regulamentou esta lei.”
Estados
Em que pese a falta de vontade política, os pesquisadores concordam que o Brasil tem estrutura governamental e suporte legal para o gerenciamento costeiro. “A legislação define vários instrumentos que ajudam nisto. Primeiro, deve ser feito o zoneamento ecológico-econômico em cada Estado, embora o Brasil já tenha o seu, em desenvolvimento”, afirma Asmus. Depois, o plano de gestão ambiental da zona costeira – lista de ações necessárias, em curto, médio e longo prazos, com responsabilidades, indicadores de ação, fontes de recursos e responsáveis pela fiscalização. Os gestores municipais devem ter isto à mão para implementarem os seus planos, aconselha o especialista. Já nos estados, a situação é muito diversa, “alguns fizeram, outros não”, observa.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, a Fepam é responsável pelo Gerco do Estado, que atinge toda a extensão litorânea, desde a divisa com Santa Catarina até a parte Sul. Em outros estados, conforme Asmus, há poucas iniciativas: “Com exceção de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, o gerenciamento costeiro avançou mais em São Paulo”, avalia. Ele acredita que são municípios de destaque, nesta área, Santos, São Vicente (SP) e Osório (RS).
Municípios
Os municípios, porém, estão longe do Gerco, em sua maioria. Asmus afirma que eles deveriam começar pela “lição de casa”, ou seja, por um bom plano diretor, que incorporasse as diretrizes do Gerco. “O plano diretor é um instrumento de planejamento – se preocupa com a questão da ocupação do solo. Deve estar ligado ao gerenciamento costeiro. O ideal é ambos serem construídos de forma harmônica. Mas não tenho idéia de quais municípios tenham implantado seu plano de gerenciamento costeiro”, atesta o oceanógrafo.
Asmus ressalta que, no Rio Grande do Sul, há interesse dos municípios em realizarem um bom planejamento ambiental porque este é um requisito para que consigam o licenciamento ambiental de atividades de impacto local. “A implantação do gerenciamento costeiro em municípios litorâneos aceleraria este processo”, analisa.
No município de Rio Grande, “temos o Plano Ambiental Municipal (PLAM), que é uma iniciativa da FURG com a Secretaria Municipal do Meio Ambiente. Não foi colocado o nome de gerenciamento costeiro, mas tem as mesmas características”, conta. “Está sendo financiado pelo BID com nome Costa Sul”, complementa.
Participação
Algo que parece de difícil compreensão para os administradores públicos e para a sociedade em geral é que o gerenciamento costeiro não é apenas um produto científico. “Ele depende de ciência, de informação, mas depende também de ação, política, de política ambiental e de governo. Precisa haver vontade política e participação popular, educação ambiental e recursos. A população deve se informar sobre isto”, reforça Asmus.
De acordo com ele, eventos como o tsunami na Indonésia, que está prestes a completar quatro anos, e as recentes enchentes do litoral norte catarinense, atestam a “necessidade de repensar a forma de ocupação do litoral, as áreas de recuo, os locais seguros e inseguros etc”. “Não se pode construir novamente em um vale de inundação de rio”, exemplifica, apontando para o caso de Itajaí. “Aquilo pode ser também reflexo da mudança climática, mas há claramente efeitos de um padrão inadequado de uso dos recursos na zona costeira. Especialmente, observam-se construções sem recuo, nas planícies de inundações dos rios, quando se sabe que a cada 20, 30 anos, costumam ocorrer cheias”, completa.
(Cláudia Viegas, AmbienteJÁ, 05/12/2008)