Betoneiras, serrotes e martelos ditam a rotina árdua de pedreiros, carpinteiros e serventes. O ritmo é intenso, de segunda a sábado, das 7 às 19h, com intervalo de uma hora para almoço, e 15 minutos por período para café. Na servidão Capivari, independentemente de ter ou não alvará municipal, dos embargos e das ações demolitórias, a ordem é entregar as obras o mais rápido possível. A tempo de vender as últimas unidades em oferta, mesmo sem escritura pública, e incluir mais um condomínio clandestino nas “áreas consolidadas” do novo Plano Diretor de Florianópolis, em vigor a partir de hoje.
Localizada entre o pouco que restou intacto das dunas e a rua Dário Manoel Cardoso, a servidão Capivari poderia ser uma das alternativas para organizar o bagunçado sistema viário e desafogar o trânsito entre o Sítio de Baixo, no Capivari, e o centrinho de Ingleses. Não é, porque está perdida, literalmente, entre uma dezena de condomínios residenciais erguidos sem alvará de licenciamento da Sesp/SMADU (Secretaria Executiva de Serviços Públicos) da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano.
Estreita demais para absorver o fluxo de veículos e sem calçadas laterais, na ruazinha com pouco mais de 500 metros predominam os condomínios de três andares e restaram apenas duas casas, classificadas pela prefeitura como “unidades unifamiliares”. Na metade, é interrompida pelo muro de um dos prédios irregulares, e só passa pelo portão de zinco quem têm a chave da fechadura. Os conflitos são inevitáveis.
“Às vezes, crianças, idosos e mulheres doentes ficam do outro lado da rua, embaixo de chuva e trovoada”, diz Eduardo Passos, morador do residencial Águas Claras. Também construído sem alvará e já totalmente ocupado, no prédio onde ele mora são unânimes as reclamações contra outros cinco residenciais em andamento na servidão. Denunciam, principalmente, as sucessivas quedas de energia elétrica, causadas pelas ligações clandestinas à rede da Celesc (Centrais Elétricas de Santa Catarina). Sem saneamento básico, o fedor do esgoto doméstico exala das galerias da rede pluvial, ligada ao rio Capivari.
Todos sem alvará e, mesmo assim, com ligações de energia elétrica e fornecimento de água. “É uma bagunça antiga. Deve existir algum esquema na Celesc para conseguirem cadastrar os gatos e as gambiarras na rede”, suspeita fiscal de obras Carlos Alberto Adriano, 56, um dos dois fiscais com jurisdição em Ingleses e Rio Vermelho – o parceiro dele está em férias.
Faltam fiscais e sobra ousadia
A estrutura de fiscalização é ridícula, o valor das multas é irrisório e o que predomina ainda é a força política e financeira. São apenas quatro fiscais com jurisdição no Norte da Ilha, dois deles para cobrir Ingleses e Rio Vermelho, os bairros emblemáticos da urbanização sem planejamento urbano em Florianópolis.
No Sítio do Capivari, onde o Plano Diretor permitirá a legalização por alvará de 260 estabelecimentos comerciais que funcionam “ex ofício” nas ruas Dário Manoel Cardoso, João Gualberto Soares e Graciliano Manoel Gomes, a lei sancionada pelo prefeito César Souza Junior suspende a emissão de licenças para novas construções. Mas, esta exigência municipal nunca teve valor.
Alvará é documento supérfluo para as construtoras, também informais, que dominam o mercado imobiliário naquela região da cidade. Para tentar frear a clandestinidade, a fiscalização da prefeitura passou a autuar e notificar os responsáveis técnicos (engenheiros ou arquitetos) que assinam projetos de obras não legalizadas, com denúncia formal aos respectivos conselhos regionais – Crea (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) e CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo).
Construtores clandestinos apostam na morosidade da prefeitura e da Justiça, nas multas irrisórias e nas brechas da lei para atropelar o crescimento da cidade. Os valores das notificações variam de R$ 240 a R$ 2.500, e, de acordo com a legislação em vigor, começam a ser reduzidos gradativamente a partir da quinta notificação e recursos administrativo ou judicial. “Todos os autos de infração, notificações, multas e ações demolitórias em Ingleses são reincidentes”, confirma o fiscal Carlos Alberto Adriano.
Barra do Sambaqui sem infraestrutura
Ainda bucólica e quase escondida entre o rio Veríssimo e a rota gastronômica da Costa Oeste da Ilha, do outro lado do morro, a Barra do Sambaqui está longe do ritmo frenético das construções. Mesmo assim, já conhece os efeitos do crescimento urbano desordenado e sem infraestrutura básica.
Lá também não existe saneamento básico, a rede elétrica é precária e o abastecimento de água ineficiente. A rua Isid Dutra, a principal da Barra, é exemplo clássico das deficiências estruturais. Estreita, sem calçadas laterais e pavimentada pela metade, não atende a atual demanda de veículos, fluxo agravado pelo vaivém constante de caminhões com materiais de construção.
A falta de fiscalização é flagrante. Pelo menos 300 metros do recuo de calçada da rua estão ocupados por montes de saibro, areia, reboco, brita, caçambas de entulhos, veículos e equipamentos utilizados na construção do residencial Ecovila Sambaqui, que não ostenta as placas de identificação dos responsáveis técnicos (engenheiro ou arquiteto), nem registro de licenciamento municipal.
São 22 apartamentos, todos já vendidos, e área de uso comum com salão de festas e piscina, com projeto licenciado na prefeitura, segundo o engenheiro Renato Clemente. Com a lateral ocupada pelo canteiro de obras do condomínio, pedestres e ciclistas são desviados para o meio da rua, que em dias de chuva se transforma em lamaçal.
“A drenagem da rua está obstruída, e a lama que escorre do morro causa erosão do terreno e se espalha pelas lajotas”, confirma Clemente. O sistema de esgoto, diz o engenheiro, terá tratamento com série de filtros e cloração, “com 99% de pureza antes de ser despejado na rede pluvial”.
A rede elétrica é antiga e obsoleta, e falta água regularmente. Mesmo assim, as 22 novas famílias chegam em dois meses. Atualmente, operários fazem o mutirão de acabamento da infraestrutura interna do condomínio. Em um mês, garante Clemente, o trecho da rua isid Dutra ocupado por materiais e entulho será urbanizado e reintegrado ao sistema viário.
Rede inadequada agrava quedas de energia
Dono do único mercadinho nas imediações da Escola Marcolino José Lima, na área mais tradicional da rua Isid Dutra, Anderson Viana, 35, não dá conta de repor estoques de lâmpadas, luzes de emergência e velas, líderes absolutos de vendas. Nem assim está satisfeito com o faturamento do negócio da família.
A exemplo dos vizinhos, ele está indignado com as sucessivas quedas de luz em pontos específicos da rua Isid Dutra, principalmente nos horários de pico. Recorrente há pelo menos oito anos, os apagões e oscilações de tensão se intensificaram neste verão no trecho de 500 metros sinalizado como “área escolar”. São 120 casas, com aproximadamente 400 pessoas.
Visível até para leigos, as causas já foram constatada por técnicos da Celesc que atendem emergências no bairro. Antiga, a rede é subdimensionada para o crescimento populacional, e não passa por manutenção preventiva há muito tempo. “É a mesma há pelo menos 30 anos”, diz o aposentado Luiz Carlos Acelino Alves, 58.
A fiação é fina, tem inúmeras emendas aparentes e o transformador, de 40 Kva, é insuficiente para atender a demanda de consumo. Durante um dos consertos presenciados pelo morador Vandir Santos, 47, foram usados restos de fios trazidos pelos técnicos do serviço anterior. “É gambiarra encima de gambiarra”, resume.
O chefe da Agência Regional da Celesc na Grande Florianópolis, Carlos Alberto Martins, reconhece a deficiência da rede da rua Isid Dutra. Garantiu fiação sistema de alimentação e transformadores serão substituídos e readequados à atual demanda do bairro.
CIDADE PARALELA
Ingleses-Sítio do Capivari
2010 a 2013
369 projetos aprovados Norte da Ilha
2012 a 2013
270 autos de infração
70 ações demolitórias
Dezembro 2013
84 embargos durante ação integrada Sesp/Floram
Fonte: Fiscalização de obras da Sesp/SMADU
(Notícias do Dia, 20/01/2014)
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