Da coluna de Sérgio da Costa Ramos (DC, 19/06/08)
A Rua Bocaiúva um dia se chamou, popularmente, “Rua do Sebastião”. A Almirante Lamego era a “Rua de SantAna”. A Avenida Mauro Ramos atendia pelo nome trivial de “Rua das Carreiras” ou “Das Olarias”. E a Fernando Machado registrou-se nesse Cartório Urbano como “Rua do Vigário”, certamente porque pavimentava o caminho rumo à Cúria e a Catedral.
Claro que não vivi esse tempo do século 19. Mas vivi, de certa forma, a pré-história da cidade à beira da Matriz e da Praça XV – o Mercado como empório de víveres, o Senadinho, encruzilhada de Felipe com Trajano, como empório de viventes.
Vivi a infância nos anos 1950 do século 20 – e pude conviver com uma paisagem única, feita de “marinhas”, ruas estreitas e tipos populares, figuras do relicário Amarcord. Tipos que eram chamados “por apelido”.
O “Curvina”, que corria atrás da molecada, o apelido entoado em coro, como se fosse o verso de um jogral. A gorda “Barca Quatro”, úberes imensos, língua afiada. A super-maquiada “Lídia Traça”, vestidos de melindrosa e o dorso sempre coberto de peles. O “Leonardo da Farmácia”, homossexual estigmatizado e “inticado” pela molecada. O “Marrequinha”, divertindo a cidade como Guarda de Trânsito, multando os forasteiros que acreditavam em sua pantomima. O “Adolfo”, que se arrogava proprietário de todos os carros da cidade – e que se gabava de “ter feito negócio com o doutor Aderbal”. O “Capa Preta” – identidade nunca apurada – assombrava as noites de Lua cheia, assustando as mocinhas que se atreviam a ir ao cinema noturno, no Ritz ou no São José.
E havia o “Boca da Noite”, rosto tomado pela bexiga, cicatrizes de varíola que faziam de Daniel Pinheiro uma espécie de “Fantasma da Ópera Citadina”. Seu “bom dia” fazia tremer catedrais.
As famílias cultivavam jardins de margaridas, copos de leite e bocas de leão, trepadeiras lenhosas derramavam suas flores pelos gradis, compondo, na visão do escritor Renato Barbosa, “um rendado tropical de rara beleza”.
Durante 20 anos a água passou com preguiçoso vagar sob a ponte Hercílio Luz, um bebê de quatro anos em 1930 – e uma adolescente de 14 anos, em 1950. Apenas quatro edifícios começavam a mudar a planície do chamado “Centro Histórico”: o Hotel La Porta – primeira modernidade pós-Revolução de 30 – o Edifício Ipase, o Querência Palace e o Banco do Comércio. Por causa dessas “torres”, já não se dizia que a ponte ligava “o nada a coisa alguma”.
O sol que nos alumia neste junho gelado era o mesmo sob o qual “lagarteavam” os senadores do Ponto Chic. Com a notável diferença de que, hoje, ele também aquece as moleiras dos “terroristas” Bin Laden e George W. Bush. “Naquele tempo”, ao contrário, o mundo vivia uma época de paz, uma “ressaca” da Segunda Guerra – conflito que tivera lados bem definidos: os Aliados eram os mocinhos; Hitler e o Eixo, os bandidos.
A atmosfera daqueles dias guardava um certo e inconfundível glamour, uma certa inocência perdida. Os raios daquele mesmo sol penetram hoje o alto das bandeirolas coloniais, por cujo facho levitam miríades de flocos da poeira dos tempos idos. Mas iluminam um mundo hostil para os “sobreviventes”.
Da rua já não ecoam os velhos pregões do padeiro, do peixeiro – tainhas nas carroças forradas de areias finas – e do amolador de facas e tesouras. Os tipos foram se esmaecendo como desenhos pontilhados, seus gritos abafados, como os da garganta de um condenado.
Gritos de um tempo em que, apesar de ser um lugar “pacífico”, a rua Victor Meirelles era mais conhecida como “Rua da Pedreira” ou “Rua dos Artífices Bélicos”.
“Pedreira”, hoje, é reconhecer a cidade e nela encontrar “conhecidos”.