Da coluna de Sérgio da Costa Ramos (DC, 26/08/2010)
Aversão à maresia?
Ainda não se descobriu a malsinada molécula que faz de alguns ilhéus verdadeiros representantes de uma ecoescuridão que pretende erradicar o mar como opção de trânsito e o trapiche como um ponto de tangência entre o oceano e o homem, entre o mar e a vida.
Seria uma indisposição com o salitre? Uma aversão à maresia? Uma azia pelo cheiro que emana das marés?
Se a ecoimplicância que se hospeda na Ilha, degradando o meio ambiente que finge proteger, pontificasse na Lisboa dos Descobrimentos, o mais famoso dos trapiches de Lisboa seria embargado – ali, no colo do Rio Tejo. Não teria existido a Torre de Belém e o Novo Mundo estaria por ser descoberto.
De repente, os trapiches, esses apêndices que a aventura humana plantou à beira-mar ou à beira-rio, deixaram, simplesmente, de existir nesta Ilha dos casos e ocasos raros, quase órfã de navegadores e de marinas.
A falta do hábito faz o trapiche torto. Aqui, tudo o que diz respeito ao mar, anda “de lado”. Até o trapiche que construíram na ex-Praia do Müller, às margens da Beira-Mar, mais parecia um Frankenstein pernalta – filho de algum mostrengo anfíbio do Lago Ness. Interditado para ser reconstruído, ali jaz o seu esqueleto. Até quando?
A simples perspectiva de construção de uma marina para receber transatlânticos e equipamentos de turismo, ao largo de São José, no Continente, ouriça a ecoteocracia, que já se mobiliza para a habitual corrida de obstáculos.
Chega a ser totalmente irracional essa ojeriza à construção de trapiches, como se uma ilha devesse repudiar o mar. Trapiches são promontórios de madeira ou de cimento, uma ponte entre os homens e o horizonte onde se curva a Terra. São meros “cais” ou docas à beira-mar, necessários aos homens que se relacionam com o mar seja para o comércio, para uma pescaria vadia de fim de tarde ou até para o Descobrimento da América.
Pedro Álvares Cabral, está provado, zarpou da “marina” da Torre de Belém. Se fosse desembarcar na Ilha, sentiria falta do Miramar e do trapiche da Alfândega. Ou teria que fundear ao largo, com a ajuda de uma “poita”.
O trapiche é, pois, o começo e o fim de tudo. Das grandes descobertas, das grandes (e pequenas) pescarias, dos encontros furtivos entre navais e damas da noite – como em Capitães de Areia, de mestre Jorge Amado.
O trapiche do Miramar tanto servia para um mijão noturno – e, portanto, colaborava para o “alívio” popular – como servia de tapete vermelho para as “hosanas” ao imperador, como aconteceu com Pedro II em sua segunda visita à Ilha, em 1865, sob trepidante foguetório.
E, sobre ser o que é, o tombadilho de um navio inerte, o passadiço que serve à aventura do homem, o trapiche é a escotilha aberta para o “imaginário” das viagens.
Tivemos vários em Florianópolis. O do Veleiros da Ilha, o do Miramar, o da Alfândega, os da Rita Maria, o do Estaleiro Arataca, o da Praia de Fora. Natural que esses braços postiços se fizessem ao mar numa Ilha que é banhada por duas baías.
A Baía sul, no lado insular, tinha o maior número de trapiches: quatro. Ao Norte, pontificava o da Praia de Fora. E antes que o Miramar se transformasse num esconderijo de praticantes do verbo “urinar”, com direito a ostras ao molho de ureia nos degraus de atracação, as lanchas traziam o povo do Continente – e era primeiro “ao povo” que os trapiches serviam.
Trapiches são marinas. Que mal há em modernizar os trapiches e equipá-los com banheiros e instalações decentes?
Pedro Álvares Cabral, Fernando Pessoa e o povo da Ilha de Santa Catarina agradeceriam.
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