Mover-se: no dicionário, a possibilidade de se deslocar de um lugar ao outro. Dentro da rotina, uma ação considerada natural ao cotidiano, mas que pode apresentar desafios em Florianópolis, principalmente às pessoas portadoras de deficiências. Isso porque, em meio às calçadas da Capital, existem desníveis, postes e buracos que impedem a passagem rápida dos pedestres, além de placas, tendas comerciais, lixeiras e manequins que tornam o caminho ainda mais difícil.
Mesmo que na Constituição o direito de ir e vir seja posto a todos, na prática, a possibilidade para as pessoas com deficiência de transitar pela cidade livremente é quase nula, e quando acontece é feita com horário e local previamente planejados, como é o caso de Valmira da Silva, que precisou se adaptar há quatro anos a uma cadeira de rodas depois de ter sofrido um acidente em casa.
Para ir ao centro da Capital, a aposentada tem que pensar com antecedência o caminho que vai percorrer, assim como organizar o tempo exato que pode circular no bairro, já que a bateria da cadeira elétrica não pode acabar no caminho, e com a inconsistência das calçadas a situação fica propícia de acontecer.
A moradora do bairro Carianos, obrigatoriamente, se desloca ao centro da cidade uma vez por mês devido aos remédios, consultas e burocracias bancárias. É nas ruas centrais como a Tenente Silveira, Felipe Schmidt, Conselheiro Mafra e o arredor da Praça XV que enfrenta os maiores problemas para se locomover. Lá, as vias são de pedras, e, por isso, o desnível das calçadas é o maior desafio para a cadeirante.
— Se eu não cuidar, minha cadeira tomba. Eu tenho que ficar parando por causa dos buracos, dando uma volta maior para chegar onde eu quero e evitar os desníveis, e uma hora a bateria da cadeira vai embora. Se eu não achar alguém que me ceda energia para carregar, eu fico parada no meio do centro. O que eu faço daí? Eu sou sozinha, não tem ninguém para me ajudar — diz.
— Eu preciso do medicamento e sou obrigada a estar no centro. A lei me obriga a vir, mas não me facilita o acesso — complementa.
A reportagem mapeou a acessibilidade das ruas do centro da cidade, piso tátil e rampa, e identificou poucas vias com a instalação total de ambos os equipamentos. A colocação de rampa, por exemplo, é quase inexistente na entrada dos estabelecimentos comerciais — em uma volta pelo bairro central foram contabilizados menos de cinco acessos. Já o piso tátil foi encontrado com diversas falhas pelas ruas Felipe Schmidt, Conselheiro Mafra, Vidal Ramos, Pedro Ivo e Tenente Silveira.
Os pisos para pessoas com deficiência visual começam e terminam em vários pontos, deixando parte das calçadas sem nenhum auxílio, e, muitas vezes, terminando em postes ou muros — situação que faria uma pessoa cega, por exemplo, colidir. Assim como o piso está também colocado, em alguns lugares, na extremidade das calçadas, e existem ainda pelo chão da via tampões da Celesc e buracos provocados pela falta de lajotas.
A responsabilidade pela colocação dos pisos e rampas, conforme explica o promotor do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), Daniel Paladino, é do proprietário de cada estabelecimento ou morador e, por isso, as regras para a colocação ficam a depender da interpretação de cada um, se não existir fiscalização.
— A acessibilidade é de responsabilidade do imóvel em relação a qual calçada passa. No caso, a calçada que passa na minha frente, na frente do meu imóvel, é de responsabilidade minha. O que não funciona, porque cada um faz de um jeito e ainda quando faz — explica.
Menos de 80% das calçadas do centro, segundo o promotor, possuem algum serviço de acessibilidade, nenhuma delas considerada ideal. O objetivo do MP é de que, este ano, o município faça um padrão único para a cidade e se responsabilize pela instalação dos equipamentos nas principais ruas e calçadas, cobrando depois, se for o caso, do morador.
Mesmo com calçadas apresentando desníveis, pisos irregulares, largura variável e excesso de postes, a Capital ainda é considerada pelo IBGE como uma cidade “muito acessível”. Conforme os dados, 45 mil pessoas portadoras de deficiência residem em Florianópolis. Dessas, cerca de 10 mil apresentam deficiência visual e 8 mil deficiência motora. Estão incluídos nos dados apenas pessoas cadastradas como portadoras de deficiência — o que exclui, por exemplo, idosos com dificuldades motoras.
De acordo com a prefeitura, uma mudança na fiscalização acontece, atualmente, na Capital. O órgão prevê realizar ações de incentivo aos moradores para que executem as orientações e Florianópolis tenha calçadas padronizadas, o que até então não estava sendo feito. O processo, conforme explica o secretário de Planejamento e Inteligência Urbana, Michel Mitchell, é constante e só “agora que o município entendeu a importância de falar sobre as calçadas.
— A gente tem muitos proprietários com calçadas no modelo antigo e não cobramos os que estão neste padrão ainda. Estamos montando um seminário interno para estudar a situação e aplicar ações, por exemplo, em esquinas (onde se aplica rampa para cadeirantes). No Centro Leste isso já está acontecendo. Vai tendo adições, o que a gente quer agora é dar uma orientação nova e fazer uma campanha educativa para os proprietários — afirmou.
Segundo ele, a prefeitura não tem o objetivo de punir as colocações que fogem do manual, mas de conscientizar todos os proprietários na colocação da acessibilidade.
O problema fica ainda mais evidente fora da região central. No bairro João Paulo, por exemplo, as calçadas quebradas, estreitas e com lixeiras que ocupam todo o espaço da via, além não apresentarem piso tátil ou rampa para pessoas portadoras de deficiência, impedem a passagem de pedestres. A situação se repete no bairro Pantanal, parte do Córrego Grande, Carvoeira e Agronômica — lugares por onde passou a reportagem.
Claudionor perdeu a visão quando tinha cerca de 40 anos. O glaucoma o fez deixar de enxergar na manhã seguinte de ver um jogo de futebol com os amigos no Norte da Ilha. Desde lá, precisou se adaptar aos novos caminhos e, atualmente, é presidente da Associação Catarinense de Integração ao Cego (ACIC), localizada no bairro João Paulo.
O catarinense circulou com a equipe de reportagem por algumas ruas do bairro. No caminho, de cerca de 10 minutos, foram encontradas três lixeiras, postes na via, uma barraca de pastel ocupando a calçada, carros estacionados e o piso tátil finalizado em muros.
Pelo centro, Claudionor circula em pontos estratégicos e, se precisar, acaba pedindo ajuda para pessoas na rua. O ideal, conforme costuma fazer e conta, é andar em apenas um lado da via. O outro, como não é conhecido, pode ocasionar quedas.
— Eu já sei onde ficam as lixeiras e os postes. A gente tem que decorar o caminho, e é assim, se não a gente bate em tudo. Por exemplo, os carros estacionam na calçada, aí eu bato no carro e as pessoas me xingam, mas eu não enxergo, e além de ter calçadas que terminam erradas que tem o piso tátil colocado de forma errada, as pessoas ainda estacionam. Tem que decorar o caminho, é assim, se não a gente bate em tudo. Nesses lugares que o piso tátil acaba no muro, a gente dá de cara no muro — conta.
— Se eu mudo de lado [da rua], eu tenho que adivinhar tudo. Não tem nada pra me auxiliar. Eu tô andando, por exemplo, e se eu bato em alguém eu peço desculpas. Não deveria, sou eu quem não enxergo. Às vezes eles ainda brigam, mas o piso tátil é meu, mas não quero fazer confusão — diz.
A locomoção das pessoas, em especial as que têm mobilidade reduzida, não é colocada como necessidade, conforme diz Sandro, que nasceu com deficiência visual.
— É muito difícil. O ideal seria que tivesse piso tátil por todos os lugares, segurança para o cego, parece que primeiro tem que acontecer uma tragédia ou algo do tipo para sair um planejamento da situação — diz.
— Nós é quem fazemos a cidade ficar acessível, que é aprender a caminhar.
Cadeirante se coloca em risco para transitar
Paulo César Bravo, morador do bairro Pantanal, se coloca em risco toda vez que sai de casa devido à falta de calçadas acessíveis para cadeirantes na cidade. A não utilização de rampas, ou a colocação errada do equipamento faz o catarinense escolher utilizar as ciclovias ou mesmo a rua para circular.
— Eu estou cometendo um erro, mas é o que eu tenho. Antigamente eu deixava de sair, mas agora estou indo e eu sei que é um perigo, eu tenho medo de ser atropelado, mas eu preciso sair de casa — diz.
Mesmo com a escolha de se colocar em risco, ainda assim as ruas não são estáveis e causam grandes problemas para a circulação. A cadeira de roda, por exemplo, que custa cerca de R$ 8 mil, precisa passar por manutenção frequente devido aos impactos que ela sofre no caminho.
— Tem buraco, boca de lobo, e é um espaço das bicicletas também. Isso é um problema antigo da cidade, e muito triste. Não há respeito com a gente — afirma.
O que é acessibilidade
Conforme a lei, a acessibilidade é a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, tanto na zona urbana como na rural, por pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, sem que enfrentem barreiras no caminho.
O que diz a lei
A Lei Federal Nº 10.098 estabelece critérios básicos como obrigatório para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, a fim de proporcionar à elas as mesmas oportunidades de acesso e participação na sociedade.
O texto determina que as ruas, construções e adaptações de prédios, edificações e espaços públicos devem seguir algumas regras, como, por exemplo, garantir a circulação e acesso livre às pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida; disponibilizar rampas, elevadores, corrimãos, pisos táteis e outras medidas de acessibilidade; e sinalizar as áreas de perigo e de acesso restrito.
O que seria uma calçada ideal
Segundo o Manual de Acessibilidade da prefeitura da Capital, a largura mínima das calçadas deve ser de três metros para vias locais e quatro metros em vias coletoras. No espaço, ao menos 1,2 metros deve estar destinado ao passeio e uma faixa mais próxima do meio fio, de 70 centímetros, destinada para serviço. O outro lado ficaria para a entrada e saída de lojas.
O espaço de passeio, conforme o texto, deve ser “sem interrupções, degraus e outros obstáculos como carros estacionados, materiais de obra e placas de propaganda”. É na parte de serviço que ficam os estacionamentos de bicicletas e patinetes, além das lixeiras, placas, postes, árvores e bancos (veja figura abaixo).
Pessoas portadoras de deficiência visual, por exemplo, se orientam pelo lado das edificações quando não há piso tátil, percebendo os muros com o auxílio de bengala. É o que contaram os entrevistados ao NSC Total.
Não fica claro no documento municipal se há lugar ideal para sua colocação, apesar de afirmar que “o piso precisa conectar uma estrutura a outra.” Conforme os entrevistados, porém, o piso tátil colocado desta forma pode acarretar em colisão e, por isso, o caminho seria facilitado apenas com a instalação do piso tátil em meio à calçada.
O pavimento na cor preta é o padrão atual para Florianópolis. Segundo o manual, ele deve ser o mais “escuro possível para que tenha contraste visual e orientar pessoas com baixa visão”.
Já a inclinação de rampas, deve acontecer com graus específicos de acordo com a largura da calçada. Conforme o documento, a transição entre o término da calçada e o início da rampa deve ser “suave e regular”, para que “a pessoa em cadeira de rodas possa atravessar com segurança e menos esforço” (veja abaixo um exemplo).
O que dizem os entrevistados
Para Clodoaldo e Sandro, a calçada ideal seria a colocação de piso tátil em todos os lugares da cidade para que a circulação trouxesse segurança aos portadores de deficiência, assim como um planejamento que pudesse os incluir na cidade.
— Não tem nenhuma calçada que seja inteiramente acessível aqui — comentou Sandro.
Paulo César Bravo confirma, e diz que não se encontra lugares acessíveis nos bairros da Capital. Para ele, seria ideal que existisse fiscalização das regras ou que então, os proprietários seguissem as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) — que especifica uma rota acessível e contínua para os portadores de deficiência. No documento, o caminho precisa ser “desobstruído e sinalizado, além de conectar os ambientes externos e internos de edificações para que seja utilizado de forma autônoma e segura por todas as pessoas”.
— Eu vou em lojas, tem degraus. As rampas não são enfeiteis, e estão sendo colocadas em locais sem sentido e com inclinações não utilizáveis por nós. É horrível, a calçada não oferece segurança, tanto que eu utilizo a rua, onde não é o meu lugar — complementa ele.
A reportagem desenhou a calçada ideal de acordo com o Plano Diretor da Capital de 2014 e os pedidos dos entrevistados.
(NSC, 18/06/2023)
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