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Classe criativa e o desenvolvimento econômico urbano

Em 2002, o economista e pesquisador Richard Florida publicou sua obra “A ascensão da classe criativa” e acendeu o debate sobre a importância da força de trabalho criativa para o atual desenvolvimento econômico urbano e regional. A suposição básica do autor é que uma região com maior concentração de profissionais criativos, ou classe criativa, possui melhor desempenho econômico; considerando que tais indivíduos costumam empreender, atuar em negócios inovadores, produzir e, até mesmo, atrair novos serviços, investimentos e atividades para o local.

Em parte, sua teoria surgiu da percepção das mudanças ocorridas no cenário econômico desde a década de 80, quando o setor manufatureiro passou a perder espaço para modelos de negócio baseados em conhecimento e inovação. Antes desse período, as políticas de desenvolvimento econômico urbano e regional se direcionavam principalmente à atração de empresas e investimentos às cidades, por meio de incentivos como abatimentos fiscais, terrenos e facilidades na regulamentação. Em decorrência da instalação dessas empresas, pessoas eram atraídas à essas áreas pela geração de emprego e renda.

Entretanto, com a transformação no cenário econômico, foi preciso adaptar-se ao modelo de desenvolvimento de cidades criativas. Nesse novo contexto, o recurso-chave é a criatividade que gera inovação, fazendo com que as políticas se orientem mais à atração de talentos criativos do que à atração de empresas. A classe criativa passou a atrair as empresas, negócios e investimentos a esses espaços urbanos, rompendo o paradigma anterior do desenvolvimento econômico. Enquanto isso, o que atrai a classe criativa são, sobretudo, as características locais aderentes ao seu estilo de vida, não mais a presença de empresas e oportunidades de trabalho específicas. Nesse sentido, a estratégia utilizada é o aumento da qualidade do lugar para as pessoas, estimulando a diversidade e promovendo comodidades, arte e cultura que acolham os criativos ao espaço urbano (DEPINÉ et al., 2017).

Essa discussão se tornou foco de interesse de acadêmicos, políticos e administradores por apresentar uma nova visão sobre o impacto da atuação profissional dos indivíduos na economia. Ao inferir que a atividade profissional realizada pelos residentes de um determinado local contribui mais para o desenvolvimento econômico regional do que o grau de instrução desses, surgiu uma alternativa à concepção tradicional de capital humano. Assim, por exemplo, compreende-se que um economista de formação pode atuar como artista, enquanto um indivíduo sem formação acadêmica alguma pode tornar-se um empreendedor de sucesso, caracterizando ambos como parte da classe criativa.

A classe criativa é formada, basicamente, por pessoas que agregam valor econômico por meio de sua criatividade. Enquanto a medida convencional do capital humano é baseada em níveis de escolaridade ou grau de formação, a teoria da classe criativa utiliza medidas baseadas em ocupações. Assim, membros da classe criativa são indivíduos diretamente responsáveis pela geração de novos conteúdos, ideias, negócios, projetos e produtos.

Esta categoria se divide nas seguintes duas subcategorias: profissionais criativos e núcleo hipercriativo. Profissionais criativos são encontrados em diferentes áreas de atuação, mas possuem, em comum, a responsabilidade de resolver problemas complexos que dependem de uma boa dose de julgamento independente e alto nível de conhecimento. Alguns exemplos dessa subcategoria são: advogados, gestores e analistas financeiros. Já o núcleo hipercriativo é composto por indivíduos que atuam em atividades essencialmente criativas; como cientistas, arquitetos, designers, engenheiros e programadores.

No interior do núcleo hipercriativo, o autor ainda discute a presença dos boêmios — trabalhadores do meio artístico e cultural — como um fator diferencial ligado ao surgimento de novas empresas e negócios, conectando diretamente a economia aos ativos culturais. Os denominados “boêmios” são; mais especificamente, autores, designers, músicos, compositores, atores, artesãos, pintores, fotógrafos, dançarinos, etc.

Apesar de encontrarem-se em menor número que os demais criativos nas cidades, são considerados os mais “atrativos” para a classe criativa (CLIFTON, 2008). Tiruneh, Sacchetti e Tortia (2017) forneceram evidências que comprovam essa associação na Alemanha apresentando dados de que a presença dos boêmios exerce forte influência positiva na geografia de outros setores criativos profissionais. Nos Estados Unidos, Bieri (2010) também encontrou evidências dessa associação em relação às empresas de tecnologia e inovação especificamente. O autor indica que a combinação de criatividade e diversidade representada pela classe criativa se mostrou um fator-chave na escolha de localização de novas empresas de alta tecnologia. É possível que isto ocorra porque o perfil artístico dos boêmios cria uma sensação de vitalidade ao espaço urbano, tornando a região mais atraente, diversificada e aberta para outros profissionais criativos.

Esse impacto da classe criativa na economia também depende da presença de ligações causais entre os “Três T’s”: tolerância, tecnologia e talento (FLORIDA, 2011). Para o autor da teoria da classe criativa, as cidades contemporâneas com bons resultados econômicos apresentam conexões positivas entre a presença de empresas de tecnologia, capital humano qualificado e tolerância, ainda que estas variem de acordo com a região ou país, pois é condicionada às características do local (NATHAN, 2015).

Os 3 T’s, quando trabalhados juntos, podem impulsionar a inovação e o crescimento econômico de uma região. Porém, a sinergia entre ambos é essencial para o desenvolvimento econômico, haja vista que determinadas regiões onde apenas um ou dois dos 3 T’s são encontrados, não conseguem alcançar o crescimento almejado (DEPINÉ, 2016).

“Os 3 T’s explicam porque cidades como Baltimore, St. Louis e Pittsburgh são incapazes de crescer. Apesar de seus amplos recursos tecnológicos e suas universidades de primeira linha, elas não são suficientemente tolerantes e abertas para atrair e reter os trabalhadores criativos mais talentosos. A interdependência dos 3 T’s também explica por que cidades como Miami e New Orleans não se saem muito bem devido à ausência de base tecnológica necessária, mesmo sendo consideradas mecas do estilo de vida. Os lugares mais bem-sucedidos, como San Francisco, Boston, Washington, Austin e Seattle, por exemplo, reúnem todos os 3 T’s. Essas regiões são verdadeiramente criativas” (FLORIDA, 2011, p. 250)

Para Florida (2014), a tecnologia é o que impulsiona a atual economia a se revolucionar constantemente. Assim, o talento se torna crucial, pois os trabalhadores do conhecimento, ou os criativos (classe criativa), não apenas aperfeiçoam os meios de produção já existentes, como também criam novos produtos e mercados. Por fim, a tolerância é importante porque o talento é “móvel”: ele flui, e os lugares em que ele flui são aqueles mais acolhedores e diversos.

Nesse sentido, outro importante pilar da teoria é a mobilidade geográfica dos criativos. Florida defende que considerando (1) o fato de a distribuição de talentos não ser algo geograficamente uniforme e que (2) os membros da classe criativa costumam escolher o local de moradia com base em seu estilo de vida, as cidades e regiões podem apresentar ou, até mesmo, desenvolver características mais atrativas para essa classe, consequentemente melhorando seu desempenho econômico. O autor ainda afirma que existem pessoas criativas de todos os tipos, mas há algo em comum entre todas elas: forte desejo de trabalhar e viver em ambientes em que possam exercer sua criatividade, portanto onde suas contribuições sejam valorizadas, haja disponibilidade de recursos, desafios e receptividade a mudanças e novas ideias.

Assim, conforme a literatura científica sobre o tópico demonstra, é possível afirmar que algumas das condições que motivam esta classe criativa a viver e trabalhar em determinados espaços são: amenidades naturais, tolerância, abertura social (“mente aberta”) e incentivos econômicos. Depiné (2016), sintetizou os principais fatores apresentados por Florida em sua obra.

FATORES DE ESCOLHA DA CLASSE CRIATIVA POR UMA CIDADE OU REGIÃO:

MERCADO DE TRABALHO AMPLO

Mercado condizente com o plano de carreira horizontal, pois os profissionais tendem a ficar pouco tempo no mesmo emprego.

ESTILO DE VIDA

Devido ao horário de trabalho flexível e imprevisível, é importante o acesso imediato ao lazer: cena musical, artística, tecnológica, esportiva e vida noturna.

INTERAÇÃO SOCIAL

Espaço para interação em que possam preencher a lacuna de contato com outras pessoas, considerando sua propensão a viver sozinhos, postergar a formação de uma família e mudar de emprego com frequência.

DIVERSIDADE

Característica cosmopolita, onde qualquer indivíduo possa encontrar grupos de pessoas afins com quem se sinta à vontade, bem como grupos diferentes que lhe sirvam de estímulo.

AUTENTICIDADE

Proporcionar experiências singulares e originais, apresentando-se por meio de suas construções históricas, bairros de renome, figuras excêntricas e atributos culturais.

IDENTIDADE

O lugar transmite um status e por isso as pessoas querem se envolver na comunidade em que vivem e contribuir para que este reflita e legitime a sua própria identidade.

QUALIDADE DO LUGAR

Características que definem um lugar e o tornam atraente à classe criativa:

– O que está lá: combinação entre ambiente construído e ambiente natural;

– Quem está lá: diversidade de pessoas e interação;

– O que está acontecendo: vitalidade das ruas, cultura dos cafés e artes, participação de atividades ao ar livre e empreendimentos criativos.

Entretanto, o impacto de cada fator varia conforme a subcategoria no interior da classe criativa. Para You e Bie (2017), os hipercriativos dão maior importância à tolerância e mente aberta, enquanto os profissionais criativos se interessam mais pelos aspectos econômicos do local. Depiné (2016), em pesquisa realizada com a classe criativa de Florianópolis, mostrou que o fator de atração mais significativo para ambas as subcategorias é a presença de oportunidades de educação e aprendizagem na cidade. Porém, os fatores subsequentes são valorizados de forma diferente: para os hipercriativos, o segundo fator mais importante é o mercado de trabalho e suas oportunidades profissionais, enquanto os criativos são mais influenciados pelas amenidades naturais e paisagens.

De toda forma, independentemente da ordem dos fatores, Goldberg-Miller e Heimlich (2017) destacam que a teoria da classe criativa de Florida incorporou a filosofia de Jane Jacobs, reforçando que é primordial realizar um planejamento urbano centrado nas pessoas. A comunidade criativa precisa estar envolvida em questões de planejamento e desenvolvimento, nas quais cabe aos residentes, formuladores de políticas, empresas e pesquisadores a responsabilidade de incluí-los e tornarem esse processo colaborativo. Além disso, atrair a classe criativa às cidades é uma importante estratégia para torná-las criativas.

Um dos exemplos é o caso de Nova Iorque, uma das cidades criativas mais conhecidas no mundo e considerada a mais criativa dos EUA (CCI, 2017). O estudo desenvolvido por Goldberg-Miller (2018, no prelo) evidenciou que durante a década de 2000, após o choque causado pelo atentado de 9/11, a cidade passou por uma revitalização que teve o setor criativo como principal estratégia, o qual atuou como um papel informal, mas efetivo, contribuindo para a recuperação do “fascínio urbano” que a cidade exercia. Além disso, a concentração de criativos foi crucial para melhorar o desempenho econômico urbano por meio da economia criativa e, assim, promover o bem comum.

Entretanto, essas descobertas sobre o impacto da classe criativa também apresentam novos desafios para os formuladores de políticas quanto às outras consequências do desenvolvimento econômico dirigido por ela. Nathan (2015) afirma que há um consenso na literatura científica sobre o fato de os gestores e formuladores de políticas públicas precisarem voltar-se para à questão da classe criativa considerando dois aspectos: o primeiro, econômico, pois há a necessidade de equilibrar os benefícios econômicos potenciais aos “custos” da mudança demográfica; e segundo, político, visto que é preciso equilibrar as necessidades de diferentes grupos e promover um desejo de cidadania compartilhada.

Martin, Florida, Pogue e Mellander (2015) apontam como resultado de pesquisa empírica que, ainda que áreas metropolitanas com maior presença de empregos ocupados pela classe criativa apresentem salários e rendas mais altos, esses benefícios não atingem todas as categorias de trabalhadores na cidade, apenas aos criativos. Além disso, outras implicações sociais podem ser o aumento dos custos relacionados à moradia nestas áreas e ao acesso à serviços, abrindo espaço para segregação e até mesmo a gentrificação. Assim, apesar da concentração da classe criativa em determinados espaços apresentar diferentes resultados positivos, também há desafios que precisam ser superados para garantir o bem comum.

A presença da classe criativa é um dos elementos mais importantes no desenvolvimento de uma cidade criativa, não apenas pelo fortalecimento econômico por meio das áreas da economia criativa como inovação e tecnologia, mas também pela possibilidade de transformação positiva do cenário urbano, seja o ambiente natural e sua valorização ou a recuperação da vitalidade das ruas e fortalecimento do cenário cultural. Um dos desafios das cidades criativas contemporâneas é direcionar o potencial da classe criativa, o qual já é bastante presente no desenvolvimento econômico, para o desenvolvimento de outros aspectos da cidade, considerando a possibilidade de usar esse recurso criativo na solução de problemas complexos e na criação de novos projetos, ações e políticas que possibilitem cidades e regiões melhores para as pessoas no amanhã.

Versão editada do artigo originalmente publicado na sexta edição da VIA Revista.

Originally published at http://via.ufsc.br on May 4, 2019.

OUÇA O PODCAST:

(Urban Studies, 15/12/2020)

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