A primeira audiência pública conjunta dos fóruns catarinense e gaúcho que monitoram os impactos dos agrotóxicos no meio ambiente e nos alimentos e na água para consumo humano apresentou estudos que demonstram a necessidade de revisão da legislação brasileira no sentido de restringir o número de ingredientes ativos licenciados para o uso na agricultura e de ampliar os parâmetros de fiscalização e monitoramento de resíduos tóxicos originários de pesticidas e herbicidas.
Com o tema “A potabilidade da água para consumo humano e comunicação de riscos por conta do uso de agrotóxicos”, a audiência pública ocorreu de forma virtual e reuniu simultaneamente integrantes dos Ministérios Públicos de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, Federal e do Trabalho, além de pesquisadores e estudiosos do problema dos dois estados do Sul e de Minas Gerais.
O Coordenador do Centro de Apoio Operacional do Consumidor (CCO) do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), Promotor de Justiça Eduardo Paladino, ao fazer um balanço dos trabalhos do Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos (FCCIAT), anunciou que, no ano que vem, o Programa Qualidade da Água do MPSC conseguirá, pela primeira vez, monitorar a presença de agrotóxicos nos mananciais de água que abastecem a população do 295 municípios catarinenses. O último monitoramento atingiu 88 municípios e a ampliação do estudo será possível devido à aprovação de um projeto junto ao Fundo de Reconstituição de Bens Lesados (FRBL) do MPSC que irá financiar os trabalhos.
“Nosso fórum catarinense foi criado em 2015, por uma iniciativa do MPSC em articulação com o MPF, o Ministério Público do Trabalho e dezenas de organizações públicas e civis, com a finalidade de instituir um espaço de debate para a formulação de propostas, discussão e fiscalização de políticas públicas relacionadas aos impactos dos agrotóxicos e transgênicos na saúde da população. Inicialmente, na sua data de criação, o fórum contava com 59 entidades e associações, e hoje são 97 instituições participantes do nosso fórum e das nossas reuniões ordinárias”, disse Paladino, dimensionando a abrangência da participação da sociedade e de suas organizações no FCCIAT.
O Secretário do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos (FGCIA), Rômulo André Alegretti de Oliveira, destacou como principal conquista a ampliação dos parâmetros que devem ser monitorados nos mananciais e na água tratada que abastecem a população no Rio Grande do Sul, onde a norma passou a fiscalizar 46 substâncias ativas residuais de agrotóxicos contra 27 da regulamentação anterior.
Estudos reforçam necessidade de normas mais rigorosas
Na audiência, três palestras apresentaram resultados de estudos que embasam a atuação dos dois fóruns e reforçam a necessidade de uma regulamentação que leve a uma fiscalização mais rigorosa do uso de agrotóxicos como forma de reduzir os impactos dos resíduos no ambiente e na água consumida pela população.
Do Rio Grande do Sul veio o exemplo do trabalho feito em Vacaria pelo Vigiágua, um projeto que integra o Ministério da Saúde (MS), a Secretaria Estadual de Saúde (SES-RS) e as Secretarias Municipais de Saúde. Lá foram constatados resíduos de atrazina em valores acima do permitido ou muito próximos dos limites legais tanto no manancial que abastece a cidade quanto na água tratada. A atrazina é uma substância de uso permitido no Brasil, mas já proibida em outros países, e já foi comprovada como um produto cancerígeno e desregulador hormonal para peixes, aves e ratos.
O Vigiágua, em um trabalho integrado com as autoridades de saúde do estado e do município e com a Corsan, a companhia de água gaúcha, uniu fiscalização e comunicação de risco e conseguiu identificar as lavouras de milho e soja responsáveis pela contaminação dos mananciais. Nas amostras coletadas este ano, os índices de resíduos já começaram a apresentar redução.
O estudo do Programa Qualidade da Água do MPSC apresentado pela professora da UFSC e doutora em Química Sônia Corina Hess constatou a presença de agrotóxicos em níveis bem acima do que é tolerado na União Europeia nos mananciais de água que abastecem a população de 43 municípios catarinenses, entre os 88 pesquisados.
Um dos fatos que mais despertaram a preocupação da pesquisadora foi a presença de mais de um ingrediente ativo usado em agrotóxicos na maioria das amostras coletadas nos municípios em que houve a detecção de resíduos, mas em nenhuma os índices estavam acima do admitido pelas normas brasileiras, embora todos estivessem acima do que é admitido pelos países da União Europeia, por exemplo.
Para Hess, isso demonstra como a regulação brasileira não é eficiente para evitar os impactos dos agrotóxicos: “A legislação atual prevê que as concessionárias de abastecimento público de água devem apresentar um relatório de 27 ingredientes ativos de agrotóxicos. O Ministério Público de Santa Catarina evoluiu e incluiu 204 princípios ativos de agrotóxicos nas análises feitas na água tratada em 2018 e 2019. Eu só gostaria de observar que, atualmente, pelo menos até minha última análise, o Brasil tem 404 ingredientes ativos químicos e de agrotóxicos autorizados. Então vejam a grande distância que existe entre o que é usado e o que é analisado”, avalia.
O trabalho final apresentado fez uma análise das normas brasileiras que regulam o comércio e o uso dos agrotóxicos e reforçou o trabalho anterior. Na palestra “Regulamentação de agrotóxicos em normas de qualidade da água para consumo humano”, o professor da Universidade Federal de Viçosa Rafael Kopschitz Xavier Bastos destacou a urgência de se resolver o problema da contaminação das águas e do solo.
“Que padrão de qualidade da água queremos? Acho que isso não está desvinculado da pergunta ‘em que mundo gostaríamos de viver?’. A minha resposta é clara e creio que não seja diferente da resposta dos presentes aqui. Nós queremos um mundo livre de agrotóxicos. Do ponto de vista de regulamentação, em um mundo altamente industrializado e que infelizmente tem 404 princípios ativos de agrotóxicos autorizados, nós temos que regulamentar com fundamentação científica a presença desses agrotóxicos”, concluiu.
A audiência seguiu com a participação de várias entidades inscritas, do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, incluindo agentes públicos das áreas de saúde e representantes de classe envolvidos com o problema, que apresentaram propostas para contribuir com as mudanças legais que possam aumentar a efetividade do combate aos impactos dos agrotóxicos.
A audiência na íntegra pode ser acessada aqui.
(MPSC, 27/11/2020)
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