Capítulo II: O ano é 2029. Os locais são três comunidades que há alguns anos eram consideradas perigosas e problemáticas para Florianópolis: o Morro da Cruz, no centro da cidade, o Monte Verde, junto a SC-401 e a Vila União, no Norte da Ilha. Os personagens, três jovens na faixa de 20 anos: Willian, Ana Luiza e Mateus.
Willian está indo para o trabalho na sua bicicleta moderna depois de um saboroso café da manhã na sua varanda de frente para o mar. Chega em menos de 10 minutos ao seu local de trabalho num dos centros de inovação da região, que reúne diversas empresas de tecnologia de vários setores e nacionalidades, estendendo-se do início da SC-401 até o trevo de Santo Antônio de Lisboa, tendo o Centro de Inovação da Acate como centro nevrálgico do sistema, e que hoje abriga mais de cinco mil pessoas. Willian recentemente assumiu a função de diretor de tecnologia de uma multinacional que se instalou em Florianópolis para desenvolver soluções de Data Science e Big Data.
Ana Luiza, por sua vez, chega no centro de pesquisa de biotecnologia no Sapiens Parque, onde trabalha, pilotando sua motocicleta elétrica depois de cinco minutos, desde sua casa na Vila União. Ela se formou recentemente em computação e ciências biomédicas e trabalha num projeto de bioinformática numa empresa israelense que atua no Sapiens, juntamente com outras 150 empresas de tecnologia, serviços e turismo que empregam juntas mais de 10 mil pessoas. Ana Luiza foi convidada para ser sócia de uma startup que está sendo criada pela multinacional. Aos 22 anos, ela já é empreendedora.
Por último, Mateus, que desceu o Morro da Cruz de patinete e em 10 minutos estava no estúdio de criação da empresa de games da qual faz parte, uma startup criada por jovens profissionais da área de design, música e computação, que produz soluções para o mundo todo e já recebeu duas rodadas de investimentos de capital de risco.
O que Willian, Ana Luiza e Mateus têm em comum? Os três “vieram do Morro”, os três nasceram em famílias pobres, os três estavam destinados a escolher entre o caminho do crime ou da pobreza e, os três fizeram parte de um grupo de jovens que salvou o “Vale do Silício Brasileiro”.
A história deles mudou quando entraram num programa revolucionário e inovador que começou há quase 10 anos e transformou a vida de milhares de crianças e jovens dos morros e das comunidades carentes de Florianópolis. Tudo começou quando o então já badalado e festejado polo tecnológico de Florianópolis, chamado por muitos de Vale do Silício brasileiro, começou a enfrentar sérios problemas de disponibilidade de mão de obra qualificada, gerada principalmente pelo fato de que a cidade é relativamente pequena e não possuía uma massa crítica qualificada de profissionais. Somava-se a isso, outros três fatores que começaram a se tornar proibitivos para atração e retenção de bons profissionais no final da segunda década do século XXI: a falta de moradia de qualidade e preço competitivo, a mobilidade terrível que dificultava o acesso dos profissionais ao trabalho, sacrificando a qualidade de vida, e o aumento da insegurança e crescimento do crime, especialmente em comunidades menos assistidas pelo poder público.
O polo começou a “sofrer”. Empresas não conseguiam crescer, multinacionais que vieram para a cidade “roubavam” profissionais de outras empresas e inflacionavam o mercado, destruindo a chance de sucesso de centenas de recém-criadas startups. Foi então, que um programa, conduzido por lideranças religiosas e da sociedade civil, começou a transformar as escolas dos morros em referências de educação, implantou centros de inovação social para estímulo a arte, ciência, tecnologia e cidadania, articulou parcerias com as empresas de tecnologia para viabilizar a formação superior com o apoio na forma de bolsas e a contrapartida na participação em projetos de inovação, o que levou a um processo de efetivação e contratação de mais de 95% dos participantes. O grupo que iniciou o projeto percebeu que o problema da quantidade, qualidade, moradia, mobilidade e segurança que afetava o setor de tecnologia do “Vale” tinha uma potencial solução exatamente nas comunidades carentes, todas elas localizadas a menos de um quilômetro dos chamados polos tecnológicos.
A conclusão foi óbvia: se investissem em educação e qualificação esses jovens poderiam representar uma força produtiva com fácil acesso, moradia já disponível e, com o aumento de renda e o desenvolvimento de suas localidades, haveria uma diminuição dos níveis de crime e melhoria do padrão de segurança. E assim foi feito.
Willian, Ana Luiza e Mateus foram apenas três dos mais de 5 mil jovens que foram capacitados, desde o ensino básico, passando pelo ensino médio e chegando ao ensino superior, consolidando toda uma mão de obra que passou a ser absorvida pelo setor de tecnologia, viabilizando, inclusive, a atração de centros de pesquisa de empresas multinacionais, unidades avançadas de grandes empresas nacionais e internacionais e principalmente a criação de muitas novas startups, que puderam manter o ritmo de crescimento, de criatividade, inovação e a capacidade de renovação permanente do “Vale do Silício brasileiro”.
Pois é, o Morro salvou o “Vale”. Dez anos depois da criação do programa, esses jovens são empreendedores, executivos, técnicos reconhecidos, pais e mães de família, líderes comunitários e, principalmente, um símbolo de que muitas vezes aquilo que parece um problema pode ser uma verdadeira solução se trabalharmos com criatividade, boa vontade, espírito público e coragem de acreditar que, na maioria das vezes, parece impossível …. até que alguém faça.
* As crônicas de um futuro possível foram concebidas pelo autor para provocar a reflexão acerca de temas que se fundamentam em fatos e dados da realidade atual para explorar novas possibilidades e alternativas de futuro que estimulem e inspirem novas conquistas, a partir de mudanças de comportamento, de conceitos, mitos, estruturas, sistemas, tecnologias e visões do mundo e do futuro.
José Eduardo Azevedo Fiates é diretor de Inovação e Competitividade da Fiesc e superintendente geral da Fundação CERTI.
(NSC, 08/05/2019)
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