Recentemente, uma sentença judicial foi proferida pela desembargadora Vânia Hak de Almeida de forma favorável a alguns pleitos do Ministério Público e contra órgãos públicos sobre o tratamento inadequado que vem sofrendo o dito “casarão dos pilotos” do Campeche. Segundo a decisão, os órgãos apontados são doravante incitados a providenciar a desocupação e restauro do antigo casarão. Sempre que se fala numa sentença judicial, numa decisão determinante, há alarde de todas as partes. No caso do mencionado, no entanto, não deveria haver preocupação nem surpresa.
O casarão é, sem dúvida, o maior símbolo histórico do bairro do Campeche, em Florianópolis, pois ele representa um momento, no início do século 20, em que as características do atual bairro foram traçadas. Hoje, a principal avenida do Campeche se chama “Avenida Pequeno Príncipe” (desde 1988). O porquê desta nomeação pode ser encontrado justamente naquele casarão de pilotos situado na esquina dessa avenida com a avenida Campeche. Além disso, qualquer passante logo se depara, no bairro, com ruas designadas “Rua da Aviação Francesa”, “Servidão dos Pilotos”… E imóveis nomeados: “Residencial Antoine de Saint-Exupéry”, “Edifício Latécoère”; além do comércio, como “Armazém Zeperri”, “Conveniências Pequeno Príncipe” e outros mais.
Assim, todos os que vivem no Campeche, os que por ele passam ou o visitam, serão indubitavelmente levados a perceber que uma história relevante em torno desses nomes aconteceu por ali. E qual é, afinal, essa história que, de tão forte, justifica o nome de sua avenida central, dá nome às ruas e tem referências no comércio? É uma história que o casarão de pilotos, mesmo em seu atual estado precário, consegue contar. Ele resiste ao tempo como um prêmio para o bairro, o prêmio de sua memória.
Nesse sentido, a sentença que foi proferida pela desembargadora vem somente apressar as ações para que uma preservação adequada seja realizada. Muitos anos se passaram sem que o casarão pudesse contar de forma clara e inequívoca a sua história; ele tem 92 anos e já é hora de se fazer conhecer por todos os que vivem ou passem pelo Campeche. E a história que se desvela é poética.
O casarão de pilotos do Campeche começou por abrigar pilotos, mecânicos e radiotelegrafistas franceses que vieram ao Brasil com a implantação de uma linha de correio aéreo francesa no país na década de 1920. Essa linha foi fundada no final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, por um empresário que se chamava Pierre Georges Latécoère. Por isso, muita gente dizia que a linha se chamava “Latécoère”, mesmo depois que ela passou a se chamar “Aéropostale” em 1927. Nesse ano, outro empresário, Marcel Bouilloux-Lafont, comprou 95% das ações da Latécoère e começou a investir pesadamente na construção da estrutura das escalas em toda a costa brasileira e na América do sul. Mas os aviões da companhia eram, realmente, fabricados pela empresa de Latécoère, e tinham nomes como “Laté 25” e “Laté 26”, por exemplo. Daí a confusão entre Latécoère e Aéropostale. Para completar, a partir de 1933, a companhia foi englobada, com outras quatro empresas francesas, no que se tornou a “Air France”. Por isso, no Campeche se ouve às vezes Latécoère, outras vezes Aéropostale e também Air France. Todas têm, de fato, uma origem comum e seus aviões e funcionários estiveram no bairro.
Se há uma história empresarial por trás da construção desse casarão de pilotos, não é esta que ele conta com mais veemência. O casarão ecoa, principalmente, a história dos homens que o construíram e daqueles que o frequentaram. Ele foi ponto de encontros, portanto de alegrias, desabafos, silêncios, festas, trabalho e lazer. Ele foi ponto de encontro entre duas culturas, a francesa e a brasileira catarinense. E é isto que, uma vez restaurado e transformado em memorial, ele voltará a ser, com a singeleza de suas origens, isto é, de uma casa que abrigava pessoas numa região quase deserta entre 1920 e 1940, e todo o esplendor das vivências que essas pessoas deixaram, literalmente, no ar.
O casarão é hoje uma peça única e singular, mas ele não foi construído isoladamente. Ao lado dele, foi erguido um hangar, mais para trás, foi erguida uma casa de rádio e foram postas antenas de transmissão. Todos esses edifícios se situavam num gigantesco terreno que os franceses haviam comprado dos habitantes locais e transformado num “aeródromo”, espécie de ancestral dos aeroportos. E, além do Campeche, essa estrutura foi de Natal até Pelotas, para que o correio aéreo pudesse funcionar. Eram necessárias muitas escalas e paradas técnicas porque os aviões da época eram para lá de precários… E precisavam de abastecimento frequentemente. Assim, os casarões da Aéropostale recebiam os pilotos, radiotelegrafistas e mecânicos de passagem, possibilitavam que eles pernoitassem em caso de mau tempo ou avião danificado. Os casarões contavam, também, para sua manutenção e a do pessoal estrangeiro, com os moradores de cada cidade, geralmente pescadores porque as escalas ficavam quase sempre no litoral. Então, entre as paredes dos casarões, eram travados diálogos e discussões em francês e português, misturavam-se modos e costumes de dois lados do Atlântico.
Atualmente, não subsistem mais os casarões de pilotos da antiga Aéropsotale. Nas escalas brasileiras, eles se transformaram e a falta de conhecimento de sua história fez com que ruíssem. Mas não o do Campeche! O do Campeche sobreviveu porque, justamente, foi salvo pelo conhecimento dos habitantes de Florianópolis. Os pescadores, especialmente, e os demais que nasceram e viveram no Campeche nos idos anos de 1920 sabiam o que ele significava e, de algum modo, intuitivamente, o preservaram. Todavia, o casarão se encontra atualmente malcuidado e carece urgentemente de restauro. Só assim poderá contar devidamente a sua história, agora como peça singular de uma saga, que foi também a saga do surgimento da aviação comercial no Brasil.
Até os anos 1940, o casarão, construído pelos franceses em 1927, exerceu sua função. Fosse como “estação de passageiros”, ou casa de pilotos, ele teve sua função como parte da chamada “escala do Campeche”. De ouvir os franceses, os ilhéus o chamavam de “bâtiment” (edifício) ou de “popote”. O último é um termo interessante, pois se refere a “rancho”, isto é, refeição militar, a boia. Decerto os franceses diziam “on va à la popote”, como quem diz “vamos ao rancho” e o casarão acabou por adquirir esse nome, ou ser “nacionalizado” como “Casa da popota.”
Quando a Aéropostale foi adquirida pela Air France, a partir de 1933, a nova companhia reutilizou as antigas escalas e suas estruturas. No entanto, a Segunda Guerra Mundial eclodiu em 1939 e deixou a aviação comercial praticamente paralisada. Os diretores das escalas, da empresa, pilotos, funcionários etc. foram mobilizados. Na retomada, novos aeroportos foram construídos, como foi o caso do Aeroporto Hercílio Luz, e as pistas e escalas antigas foram aos poucos abandonadas. O terreno de aviação do Campeche, que compreendia também o casarão de pilotos, passou a pertencer à União Federal, sob a guarda da Força Aérea Brasileira.
Concessões de um lado e de outro, o casarão passou por várias fases. Foi implantada no local, numa de suas salas, uma “Escola Isolada do Campeche” em 1945, com alunos de todas as séries ao mesmo tempo, numa sala única de aula. A casa abrigava, assim, a professora Ivone da Silva e seus familiares, posteriormente substituída pela Professora Carolina Herdt, em 1957. Por se tratar ainda de região rural, a professora veio morar, com a família, na própria casa. Depois, a escola foi desativada e a professora veio a falecer nos anos 1970. Numa parte da casa, permaneceu habitando o sr. Lourenço Herdt, marido dela. Sr. Lourenço, por sua vez, faleceu em 2008, quando seus descendentes já eram independentes e residiam alhures.
Em novembro de 1989, a União Federal havia concedido para uso gratuito do Município de Florianópolis uma área de 15.022 m2, que incluía o antigo casarão. Neste, desde 1995, funcionou a Intendência do Campeche até 2015. Em 2007, a escola, então designada Escola Básica, passara a funcionar nas atuais dependências da Escola Municipal Brigadeiro Eduardo Gomes, que foi o primeiro ministro da aeronáutica no Brasil e o criador do CAN, Correio Aéreo Nacional, inspirado no correio aéreo francês. Em 2018, a atual Prefeitura Municipal de Florianópolis, ciente e ciosa da necessidade de preservar do casarão, já tombado como patrimônio histórico por decreto municipal desde 2014, inseriu à frente da casa uma placa designando-a adequadamente “Casarão Aéropostale.”
É natural que um casarão quase centenário tenha muitas histórias a contar. No entanto, é fundamental que seja mantida a sua história original, a sua razão de ser, especialmente porque essa história é excepcional e sua narrativa coincide também com a memória daqueles que nasceram e viveram no Campeche.
Se o casarão de pilotos foi curiosamente designado “bâtiment” ou “popote” pelos ilhéus, é também verdade que os chamados “manezinhos” criaram, pelo que se percebe, um apelido lendário para um dos pilotos, o dito “Zeperri”. Pela assonância, “Zeperri” seria uma forma de chamar “Saint-Exupéry”. Com relação à permanência do apelido, a sobreposição do personagem aos demais pilotos da antiga linha, considera-se que se deve ao trabalho constante do saudoso Getúlio Manuel Inácio, filho do conhecido pescador “Seu Deca”. Foi Getúlio que perpetuou as memórias do seu pai, muito mais do que o próprio Seu Deca, que faleceu há muito tempo. Foi Getúlio que contou de uma sui generis amizade entre seu pai e um piloto alto que estava sempre escrevendo, que teria saído para pescar com os habitantes do Campeche. E com sua narrativa plausível, calcada nos fatos reais da existência da escala da Aéropostale próxima à praia do Campeche, Getúlio perenizou a história do bairro e conduziu o olhar de todos além-mar, de onde vinha a presença estrangeira.
O inegável legado de Getúlio deu asas a outras esferas narrativas, as da imaginação e da poesia, que são enxerto obrigatório de qualquer história que se conte ou escreva. Seu Deca representa, a partir do conto de Getúlio Inácio, todo o povoado do antigo Campeche; hospitaleiro, curioso, humilde e trabalhador. Como ele, outros pescadores, agricultores, suas senhoras e filhos estiveram na dita “popote”. Levavam ovos, peixes frescos, ajudavam na lida cotidiana dos pilotos e mecânicos. Estes, por sua vez, se tornaram ligados aos ilhéus. Sabe-se, por notícia do jornal de Florianópolis, que os funcionários da Aéropostale (tida por Latécoère no texto) salvaram a vida de pescadores que se afogavam próximo à Ilha do Campeche.
Por: Mônica Cristina Corrêa
Presidente da Associação Memória da Aéropostale no Brasil
Doutora em Língua e Literatura Francesa pela USP, tradutora e representante da Fondation Saint-Exupery pour la Jeunesse em Santa Catarina.
(Riozinho, 15/04/2019)
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