Ao completar oito anos, a Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos enfrenta o conflito de obrigar a indústria a devolver aos municípios o investimento realizado para garantir a coleta seletiva de materiais recicláveis secos. As prefeituras têm arcado com custos bilionários para coletar embalagens de plástico, vidro, papel e metal, apesar da responsabilidade pelo gerenciamento desses produtos pós-consumo ser de quem os fabrica, distribui e vende.
Em São Paulo, o prejuízo estimado nos últimos cinco anos é de R$ 1 bilhão. Em Florianópolis, a municipalidade por meio da Comcap faz a coleta seletiva há 30 anos. Por ano, são coletadas 12 mil toneladas de materiais recicláveis ao custo de R$ 12 milhões. Esse material é doado para 14 associações de triadores e gera em torno de R$ 4,5 milhões em renda compartilhada por 842 pessoas na Grande Florianópolis. Apesar dos ganhos ambientais e sociais, o custo da operação da Comcap não é ressarcido pela indústria, nem pela taxa de coleta que se refere ao serviço da coleta convencional.
Não por menos, hoje há no Brasil duas centenas de ações judiciais, na maioria propostas pelo Ministério Público, pressionando a indústria e o governo federal a redimensionar o acordo setorial para embalagens, denominado Coalizão. “O de embalagens é o pior acordo setorial”, apontou o promotor do Ministério Público de São Paulo José Eduardo Ismael Lutti, durante o III Seminário O Ministério Público e a Gestão de Resíduos Sólidos e Logística Reversa realizado pela Abrampa (Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente) em Florianópolis, dia 15 de março de 2019.
Para redimensionar o acordo setorial das embalagens, assinado entre a iniciativa privada e o governo federal, recomenda Lutti, o primeiro passo é incluir os municípios na conversa. A representante da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Cláudia Lins Lima, da mesma forma, defendeu o avanço no plano nacional de resíduos sólidos, que nunca foi formalizado.
O presidente da Autarquia de Melhoramentos da Capital Comcap, Márcio Alves, participou da abertura do evento, representando o prefeito Gean Loureiro. A Comcap foi convidada a participar do primeiro painel Gestão dos Resíduos Urbanos por ser referência em desvio de resíduos do aterro sanitário, com percentual de 6% sobre o total coletado, e pelas experiências inovadoras com pontos de entrega voluntária (PEVs) de vidro, Ecopontos e valorização dos resíduos orgânicos.
A engenheira sanitarista da Comcap Flávia Guimarães Orofino destacou as ações desenvolvidas pela autarquia apesar de, na prática, ainda não haver articulação institucional da Coalizão das embalagens com os municípios. “As quantidades recolhidas e os investimentos propostos pela Coalizão são irrisórios, diante do esforço realizado pelas municipalidades”, disse a palestrante.
Em Santa Catarina, relatou, não há investimentos previstos, além de algumas poucas iniciativas isoladas do comércio varejista e da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec).
Flávia defendeu a adoção de modelo europeu,” onde cada embalagem colocada no mercado deverá retornar ao ciclo produtivo, sendo a municipalidade ressarcida pela realização da coleta seletiva e cabendo a esta sensibilizar os cidadãos a entregar de forma separada os resíduos recicláveis”.
Coleta Seletiva de Orgânico
A cada 500 minhocários doados, meta é o desvio de 292 toneladas de orgânicos por ano com economia de R$ 43 mil em transporte até o aterro e redução na emissão de gases de efeito estufa.
Das 209 mil toneladas coletadas em Florianópolis por ano
O sr apresentou uma conta que expõe o prejuízo dos municípios com a coleta seletiva de embalagens. Poderia exemplificar?
O município de São Paulo tem um prejuízo de R$ 1 bilhão em cinco anos com a coleta seletiva. É um prejuízo cujo valor seria de atribuição exclusiva do setor privado. Isso precisa mudar, é urgente essa mudança. Primeiro, o artigo 28 determina que o consumidor final, o cidadão, o gerador domiciliar de resíduos recicláveis tem que devolver ao fabricante o produto pós-consumo. Seja no ponto do comércio, enfim, onde a iniciativa privada determinar. Não é responsabilidade do município. O município pode e deve implementar a coleta seletiva de porta em porta, mas o custo disso não é responsabilidade da prefeitura. O município estabelece por meio do Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, até onde pode ir e quanto vai custar para a iniciativa privada ressarci-lo. Isso, se o setor empresarial quiser que o município faça a coleta das embalagens.
Seria o caso dos municípios abrirem uma conversa diretamente com os grandes fabricantes para cobrar essa conta?
Penso que não há outro caminho que não seja, primeiro, o município fazer um plano de gestão integrada, mas de forma adequada, com estudo de gravimetria. Esse estudo vai indicar os tipos de material reciclado e, portanto, pode-se apurar os setores que têm maior responsabilidade. Com esse estudo o município tem condição de chamar os fabricantes e apresentar a responsabilidade de cada um e quanto custa para coletar. Esse é o único caminho.
O consumidor, como sua apresentação mostrou, tem percepção de valores. Um deles poderia ser o valor dos cuidados ambientais, da economia circular. Isso pode gerar alguma boa vontade na questão dos resíduos?
Não, acho que isso só vai ter impacto na economia circular a partir do momento que os investidores daquelas empresas, os acionistas das grandes empresas, começarem a levar em consideração o volume de ações judiciais contra a empresa. É a única forma. Pesquisa Ibope indica que 97% dos brasileiros acreditam que o caminho é reciclar, que a reciclagem é importante, mas 66% deles não sabem o que é reciclável ou não.
Então é muito difícil deixar para o consumidor decidir. Especialmente quando aqueles de maior renda, os que produzem maior volume, são aqueles que chegam no supermercado e acham a garrafinha bonitinha e compram pela garrafa, embora a água do PET seja a mesma daquela da garrafa de vidro.
Então, não vale esse discurso de advogados da coalizão e da Abihpec de que fazer a logística reversa de vidro do Norte ou Nordeste pra cá é inviável. Voltando ao exemplo da Minalba Premium, que vende a mesma água a um custo quatro vezes maior quando a embalagem é de vidro. Ela só é fabricada em São Paulo. É enviada lá para o supermercado de Fortaleza, digamos, aí depois de consumida não tem como trazer de volta? Ué? Mas eles não levaram de caminhão até lá? Que tragam de volta. Fica caro? Então põe no preço da garrafinha lá que vendeu, não paga mais caro para trazer a tampinha da Alemanha? Então, é isso. o doutor Luciano Loubet falou exatamente isso: a viabilidade econômica tem de ser analisada sob aspecto da cadeia do produto e não sobre uma garrafinha que está lá naquele local. Eles não levaram até lá? Tem que ter o custo de volta.
Outro argumento dos advogados da coalizão é que metade dos municípios brasileiros ainda não tem aterro para mandar resíduos…
Aterro sanitário é uma coisa de responsabilidade dos prefeitos. Isso é uma coisa que não influi em nada na logística reversa. Ou seja, é uma forma de desviar atenção da responsabilidade deles para a responsabilidade do prefeito. Olha o prefeito não faz isso, então não vamos fazer aquilo. Uma coisa não justifica a outra. No Brasil inteiro em praticamente todos os municípios que ainda não resolveram o problema de lixão há uma ação do Ministério Público. Está no Judiciário que nem sempre dá ganho de causa ao MP. Então a culpa não é do Ministério Público, muito menos do prefeito que sentou lá e herdou uma ação civil contra o lixão. Mas isso não se mistura, são duas questões superimportantes da política nacional, mas que não tem relação com a responsabilidade do setor empresarial na logística reversa.
E a questão da tributação?
Isso é importante. Não dá para cobrar até mais caro por um produto reciclado. A lei fala que os estados deverão dar incentivos econômicos. Não deve ter ICMS sobre o transporte de resíduos. Eles querem cobrar ICMS sobre o vidro, resíduo que sai, por exemplo, do Mato Grosso do Sul para reciclar em São Paulo. Querem cobrar sobre o caco de vidro dizendo que é matéria-prima. Não é matéria-prima, é resíduo que está indo para a reciclagem.
Haveria como incentivar a indústria de reciclagem no Brasil? Não há para onde mandar o material coletado na seletiva.
Esse é um problema sério e que dependeria de entendimento. Quando fala em entendimento já complica, mas dependeria de entendimento entre os estados e a União. Porque tem de ter uma política pública de incentivo, mas que seja planejada regionalmente. Por exemplo, no Sul o problema é eletroeletrônico, PET e vidro, então precisa incentivar essas cadeias para que implantem plantas recicladoras. Assim como se fala em consórcios de municípios para deposição em aterro sanitário, temos de pensar num “consórcio” entre estados para que seja viável destinar os resíduos recicláveis.
O encontro de hoje pode apontar para mudanças?
Quando idealizamos esse seminário na Abrampa usamos um modelo que eu vinha desenvolvendo em São Paulo em outros temas ambientais: não adianta ficar conversando com seu próprio grupo. Tem de ouvir as outras partes envolvidas. Já tem algum resultado: a Confederação Nacional da Indústria, por exemplo, acabou de nos convidar para uma conversa, dentro da CNI, para participar de discussão sobre resíduos sólidos. O que vai sair dali ninguém sabe, pode não sair nada, mas já é um passo porque a Fiesp em São Paulo era a única entidade que havia sentado com Ministério Público. Agora vem a CNI. Eles já perceberam que estão gastando muito dinheiro com advogados e que isso não está sendo eficiente. Aí vem a questão da imagem, principalmente para as grandes empresas multinacionais, sejam brasileiras ou estrangeiras, de ter um volume de ações por não cumprimento da lei de resíduos sólidos. Começa haver movimentação e é isso que o Ministério Público quer: que todos os setores voltem à mesa de negociação para que possam redimensionar o acordo setorial existente. É preciso que o acordo tenha um rumo adequado. Que inclua municípios e discuta abertamente a questão de subsídios sobre materiais recicláveis.
E os catadores?
Os catadores são uma parte importante, mas não a solução. Esse é o grande erro do acordo setorial de embalagens. Eles deram como solução para a logística reversa a atividade dos catadores. E está completamente equivocado. Todas informações que trazem são destituídas de credibilidade porque não há rastreabilidade da informação, não tem uma fonte segura, não tem auditoria. O acordo setorial das embalagens não tem transparência e o grande culpado disso é o governo federal que aceitou passar a logística reversa goela abaixo, por imposição da força econômica da época. E vem aí o pessoal dos catadores dizendo que era o acordo possível. O acordo possível é o seguinte: cumpra-se a lei, se não quiser cumprir a lei será baixado decreto. Isso foi feito para medicamentos, por que não fizeram para embalagens? O governo federal abaixa a cabeça para o setor empresarial, como vem fazendo com o setor automobilístico. Também deveria ter um sistema de logística reversa de carros, como todo país civilizado tem. O carro vira sucata e vira problema para os departamentos de trânsito dos municípios que precisam dar uma destinação final para aquilo que fica num pátio vazando óleo, enferrujando. Em São Paulo há casos gravíssimos de pátios de automóveis e a indústria não faz a reciclagem.
Também há o caso de móveis e a multiplicação de pontos de descarte irregular de resíduos volumosos nas cidades. O Ministério Público pretende forçar o canal institucional com o governo federal para ampliar a logística reversa ou tudo vai ser feito pela judicialização?
Esse novo governo federal já mostrou que não tem interesse nas questões ambientais, especialmente com a nomeação do ministro de Meio Ambiente que foi condenado no Estado de São Paulo por improbidade administrativa como secretário de Meio Ambiente, porque forjou um mapa favorável aos mineradores. Só por aí, se tem uma ideia do nível de dificuldade que há em se comunicar com o ministro. Enfim, eu acho que não vai ser possível uma conversa.
(PMF, 08/04/2019)
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