Conhecida hoje como “Igrejinha da UFSC”, a antiga “capela da freguesia da Santíssima Trindade” é um edifício de importante valor histórico e cultural. Construída em 1848 e inaugurada oficialmente em 1853, época em que o bairro Trindade era ainda região rural da Ilha de Santa Catarina, a Igrejinha preserva, em sua estrutura, os materiais de construção comuns daquela época – pedras, areia da praia, conchinhas, cal etc. –, além de resquícios de utensílios utilizados nas cerimônias religiosas, como pias de água benta. Assim que finalizada a reforma atualmente em andamento, parte de tudo isso estará exposta para que o público possa conhecer ao visitar o espaço.
“A Igrejinha deixou de ser igreja e agora é mais, é cultura, é história, porque será transformada em um espaço sacro museal. Ela tem todos os elementos de uma igreja, mas tem também esse painel do Hassis, que muitos dizem que é profano, mas que na verdade é mais sacro do que a gente imagina, numa leitura muito contemporânea. É a única no mundo com uma representação tão chocante”, afirma Márcia Regina Escorteganha, responsável pela restauração do Mural Humanidade, do artista catarinense Hassis, que também está em andamento paralelamente às obras estruturais. O processo de restauro começou no dia 31 de outubro de 2018, mas precisou ser temporariamente interrompido com o início da reforma do edifício.
O restauro do Mural Humanidade precisou ser temporariamente interrompido com o início da reforma do edifício.
A reforma
Após 40 anos desde as últimas obras de melhoria — com exceção de reparos realizados nos telhados em 2016 —, a atual reforma começou no último dia 7 de janeiro e deve ser finalizada em maio deste ano. O projeto foi elaborado e está sendo acompanhado pelo Departamento de Projetos de Arquitetura e Engenharia da Universidade Federal de Santa Catarina (DPAE/UFSC).
Nesta etapa da reforma, estão sendo definidas e instaladas a fiação elétrica, fundamentais para uma adequada iluminação interna do edifício, conforme explica Leila da Silva Cardozo, arquiteta da UFSC e coordenadora do DPAE: “As luminárias originais são de cobre, as mesmas que estão do Museu Cruz e Souza e que são encontradas em várias edificações de Florianópolis dessa época. Decidimos manter os lustres com as lâmpadas voltadas para cima, exatamente como foram originalmente instalados, mas vamos acrescentar outras lâmpadas e alguns refletores, para garantir melhor iluminação, uma vez que o interior da Igrejinha é muito escuro. Se voltássemos as lâmpadas para baixo, elas seriam mais eficientes. Mas optamos por mantê-las na posição original, apenas acrescentando iluminação extra.” Segundo a arquiteta, as luminárias provavelmente foram adaptadas a partir de candelabros, usados tradicionalmente para o suporte de velas.
A reforma da Igrejinha começou no último dia 7 de janeiro e deve ser finalizada em maio deste ano.
Além da reestruturação elétrica, o projeto de reforma e requalificação também prevê a recuperação do reboco, que já estava bastante danificado e descolando da parede; a troca do piso por porcelanato, que se assemelha à madeira, pois o piso atual não harmoniza com o interior da igreja; climatização e prevenção contra incêndio; e exaustão, para possibilitar a circulação de ar.
Segundo a restauradora, a má ventilação é um dos principais problemas que há décadas vêm afetando significativamente a preservação do edifício e do painel de Hassis. “Faça chuva ou faça sol, normalmente registramos mais de 80% de umidade, quando o ideal seria que estivesse em, no máximo, 65%. Além disso, é comum que ainda antes das 8h da manhã já se registre uma temperatura superior aos 30ºC”, relata. No projeto de reforma, consta que serão instalados dois aparelhos de ar-condicionado e um sistema de renovação de ar, o que possibilitará a redução da umidade no ambiente e uma melhor preservação do espaço.
Márcia também aponta os danos causados pelas infiltrações do banheiro e da pia, instalados na parte de trás da igreja para uso exclusivo de funcionários. A tubulação de água e esgoto entra em contato direto com a parede do mural de Hassis, prejudicando a conservação do patrimônio. “As infiltrações não são só de água, mas de sais solúveis, que se encontram na urina e nas fezes. Isso migra para a parede, sobe pela porosidade da argamassa e cria grandes manchas”, explica. Uma das consequências desse processo é o acúmulo mais intenso de fungos que, junto aos resíduos do próprio ambiente, permite a proliferação de colônias de bactérias. A arquiteta Leila informa que o banheiro será desativado, mas que futuramente será necessária outra obra para implementar lavabos de uso público na Igrejinha.
Cores originais
A cor branca que vemos hoje nas paredes internas e externas da Igrejinha não é de sua construção original. No século XIX o prédio foi pintado de amarelo por fora e azul por dentro, pois essas eram as cores disponíveis na época. “Naquele tempo não havia uma gama muito variada de cores. O amarelo vinha da argila, da terra; já o azul, vinha do anil, uma substância natural que antes também era muito utilizada para lavar roupas“, explica Márcia. O anil é uma tintura de origem vegetal, extraída das folhas de diversas espécies de anileiras, sendo tradicionalmente usada também para tingir tecidos. A reforma prevê recuperar o tom de amarelo que ainda é visível por baixo da tinta branca, recuperando assim uma aparência mais próxima da antiga capela. No interior, entretanto, será mantida a pintura atual, na cor branca.
Altar é descoberto
Parte do altar ficará em exposição, junto a um quadro com o papel de parede restaurado.
Uma das partes previstas no projeto é a reforma das paredes. Durante a remoção do reboco que encobre a estrutura original, foi encontrado um altar na lateral direita que remonta à época de construção da Igrejinha. A área, com cerca de 10 metros quadrados, havia sido encoberto com tijolos. Pela insuficiência de documentos, não se sabe ao certo a data ou o motivo da interferência, mas Márcia acredita que é provável que essa e outras modificações, como a cimentação do piso, originalmente de madeira, tenham sido realizadas durante a reforma de 1979, a única de que se tem registro.
Na abertura, encontrava-se uma pia batismal.
A área descoberta se estende do teto, onde se encontra um arco, até o piso. O altar de madeira era encostado na parede e, sobre ele, encontravam-se os santos. Segundo Márcia, é possível perceber o recorte da área em que ficava o altar pela diferença nos tons da tinta.
O tipo de tintura utilizada também foi revelada com a descoberta do altar. No local, a restauradora encontrou a têmpera a cal, uma mistura de cal e pigmento natural, utilizada na fase de construção da igreja para tingir as paredes de azul claro. Sustentável, natural e resistente, essa tinta realiza o processo de carbonatação durante a secagem. “Óxidos de cálcio da cal entram em contato com o gás carbônico e eles endurecem como se estivessem secando, isso forma uma película mais resistente”, explica Márcia.
Além disso, foi encontrado uma aplicação de papel de parede, provavelmente do final do século XIX ou início do século XX. Márcia pretende restaurar uma pequena área desse papel, reproduzindo seu padrão floral. A montagem ficará exposta em forma de quadro no altar, que será conservado em parte, mas não em toda sua extensão. Márcia considera que, com a exposição, “ele não vai voltar a ser altar, mas ganhará o valor de uma peça de museu”.
Preciosidades expostas
Durante a reforma, foram descobertas aberturas em que ficavam as pias de batismo da Igrejinha. Da louça original, restaram pequenos fragmentos. Essas áreas ficarão expostas, junto a imagens das pias originais. Outra ação no sentido de preservar e expor as estruturas da igreja será deixar à mostra uma pequena parte das paredes originais, protegida com uma janela de vidro. Márcia chegou a sugerir que uma parede inteira ficasse exposta, mas Leila explicou que a equipe da reforma optou rebocá-la com cimento novamente, para evitar um desgaste maior. “Como a parede é constituída por barro e cal de concha, se ficasse exposta corria o risco de depredação.”
Foram encontradas quatro brechas que eram usadas para sustentar andaimes.
Nas paredes originais, é possível notar a presença de conchas que revelam o uso de areia das caieiras de Florianópolis, como material para a argamassa. A estrutura, constituída de grandes pedras intercaladas por pedras menores, unidas pela argamassa, faz uso de uma antiga técnica de construção que pode ser facilmente percebida nos buracos encontrados nas paredes. Essas aberturas eram usadas para a sustentação de andaimes, que possibilitavam a construção da parte superior das paredes da igreja. Ao todo, foram encontrados quatro buracos, dois na lateral direita e dois na esquerda. No entanto, somente um deles será conservado e ficará exposto para o público, protegido com vidro. Os outros três já foram fechados com cimento.
A restauradora enfatiza que expor as estruturas originais permite ao público uma compreensão maior das técnicas e dos materiais disponíveis na época de construção. “Agora as pessoas vão ver. Essa igreja foi construída com um material muito forte, muito resistente. Até a tinta, composta de cal, tem grande durabilidade. O tom de azul que vemos aqui preserva a mesma tonalidade de 1850. Nenhuma tinta de hoje dura todo esse tempo”, afirma. Para ela, essas constatações contribuem de diversas formas, tanto agregando valor ao patrimônio, quanto possibilitando aos visitantes adquirir conhecimentos de história, arquitetura, engenharia. “Quantos jovens, ao visitar essa igreja, não vão querer se tornar arquitetos, engenheiros, historiadores? É preciso valorizar o que se tem. Quando damos valor, as coisas mudam de posição.”
Contribuição da comunidade
“Eu sou igreja, eu nunca deixei de ser igreja.” Para Márcia, é isso o que a antiga Capela da freguesia da Santíssima Trindade de Trás do Morro expressa com a descoberta do altar. Desde quando foi anunciado, a comunidade do bairro Trindade passou a visitar o local para ver o altar de perto e também trazer antigos registros da Igrejinha. Muitos dos moradores têm a lembrança de quando ela ainda funcionava como paróquia e guardam também fotos e recortes de jornal, alguns preservados pelos seus antepassados. Esses documentos são importantes para a reforma e o processo de restauro, pois auxilia na recuperação da memória de seus aspectos originais, possibilitando que sejam adequadamente preservados ou restaurados. Márcia solicita, inclusive, que a comunidade continue contribuindo com o que puder. Qualquer material pode ser entregue pessoalmente na própria Igrejinha, no Departamento Artístico Cultural (DAC/UFSC), ou encaminhado para o e-mail Esta imagem contém um endereço de e-mail. É uma imagem de modo que spam não pode colher.
Materiais encontrados nos projetos de reforma e de restauro estão sendo reunidos para serem apresentados em exposição.
Exposição e documentário
Muitos dos materiais encontrados durante a reforma e o processo de restauro, como lascas do reboco com as tintas originais das paredes internas e do Mural Humanidade, estão sendo reunidos. Futuramente, eles serão apresentados em uma exposição, junto a fotos dos procedimentos de restauro e reforma.
Outro projeto também está registrando a reforma da Igrejinha e o restauro do painel de Hassis. O cineasta Zeca Pires está documentando em vídeo todas as etapas de recuperação dos projetos, com o objetivo de produzir um documentário.
Texto:
Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC e Maria Clara Flores/Estagiária de Jornalismo da Agecom/UFSC
(Ufsc, 05/02/2019)
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