A percepção de estarem rodeados por uma forma de vida simples, cheia de valores humanos, e que é regida por um cultura sob risco de extinção, promoveu em três amigos argentinos o desejo de retratar o cotidiano dos pescadores artesanais de tainha do Pântano do Sul, em Florianópolis. A comunidade, de cerca de 500 pessoas, recebeu Sergio, Alberto e Guillermo no verão de 2010, como turistas. Naquele verão na praia do sul da Ilha de Santa Catarina, Sergio Stocchero, premiado cineasta argentino, saiu instigado pela peculiaridade e valores do modo de vida dos pescadores de tainha.
Assim nascia a proposta do documentário “Tainha”. Dirigido por Sergio Stocchero, produzido por Alberto Bonafé e com assistência de produção de Guillermo Alonso, a película retrata a vida desta comunidade, composta, em sua maioria, por pessoas mais velhas, algumas com mais de 80 anos e até por uma pessoa com mais de um século de vida nesta lida.
Tainha
“Tainha” é o título do longa metragem documental que estreia no Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM) de 2019. Com apoio do Departamento Artístico Cultural da UFSC (DAC) e da Universidad Nacional de Villa María, de Córdoba (Argentina). Do tecer as redes a pintar e benzer canoas, as diversas atividades que compõem o trabalho social da pesca de tainha da comunidade são narradas pelos próprios sujeitos.
Os depoimentos são captados sem iluminação artificial. Durante o dia e no decorrer da noite, as tomadas externas e internas expõem o dia-a-dia dos pescadores em uma fotografia que prima pelo enquadramento narrativo e dramático da paisagem como uma pintura. O recurso da animação, no entanto, entra em cena quando a película retrata o trajeto das tainhas em sua desova no mar, percurso esse que os olhos treinados dos nativos captam e que também retrata as atividades da comunidade. A trilha sonora do filme é ilhéu também, com duas canções de músicos catarinenses.
A pesca artesanal de tainha
A tainha é um peixe que vive em água doce na maior parte do ano. Com a chegada o inverno no hemisfério sul, a espécie migra da bacia do Rio da Prata (Argentina e Uruguai) e da Lagoa do Patos (Rio Grande do Sul) para as praias catarinenses. No litoral de Santa Catarina, a tainha desova em águas salgadas, entre os meses de maio e julho.
Já em 1577, Hans Staden (1525-1579) relatou a prática da pesca desse peixe realizada pelos povos Carijós. A tradição indígena foi adaptada pelos colonizadores açorianos, que introduziram modificações técnicas no manuseio da canoa fabricada a partir de um único tronco. A pesca da tainha tem conservado, assim, uma prática que remete à produção da vida dos povos originários de Florianópolis, e que se modificou e foi incorporada à tradição açoriana ilhéu, como elemento agregador social e constitutivo da cultural local.
Esta tradição, entretanto, tem se reduzido gradativamente. Hoje são poucas as comunidades que têm sua vida organizada a partir da pesca artesanal de tainha. No Pântano do Sul, os pescadores artesanais têm relatado a dificuldade de inserir as novas gerações nesta cultura. A crescente imigração, o aumento demográfico e populacional e as alterações climáticas são alguns dos fatores que têm influenciado contrariamente à transmissão desses saberes.
A preservação da cultura local: do encantamento à obra de arte
“Uma mirada sobre a vida”. Assim Sergio Stocchero sintetiza a obra que dirige. Filmada na vasta área, que abrange 10% do território de Florianópolis, mas habitada por somente 0,5% dos moradores do município, o filme é resultado de um longo e cuidadoso processo de pesquisa. Para retratar esse “símbolo da esperança, que é a tainha, este peixe que viaja por três países, integrando povos e que nunca se sabe se será abundante”, como afirmou Sergio, a equipe que realiza o documentário tem feito diversas viagens da Argentina ao Pântano do Sul há quatro anos consecutivos.
Nesse percurso, foi coletado material desde fevereiro de 2015, o que permitiu a aproximação com os pescadores locais e possibilitou à equipe conhecer toda a cultura que gira em torno da pesca artesanal da tainha. Entre 2016 e 2017 foram realizadas quatro viagens de trabalho e, durante o mês de maio de 2018, são gravados os últimos depoimentos, capturando o cotidiano, as pescas, as confraternizações e as crenças que compõem e permeiam a realidade exibida no longa metragem.
A partir de 20 de maio, os três amigos que vieram ao Pântano do Sul para passar despreocupadas férias, passam à busca por apoio para finalizar a produção e pós-produção do material. A finalização do documentário será realizada na Argentina, onde residem e refletem com empatia sobre a pequena parcela de sujeitos que carrega consigo séculos de uma tradição que constitui o modo de vida de todos os que habitam a Ilha de Santa Catarina.
(Ufsc, 14/05/2018)
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