Assim como a alta no consumo de peixe e a comparação de preços entre ovos de chocolate, é certo que durante a Quaresma haverá farra do boi no litoral catarinense. Tradição, invocam alguns. Barbárie, acusam outros. Para a Justiça, crime. “Praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” dá detenção de três meses a um ano e multa. A pena pode ser maior se associada à desobediência a ordem de autoridade, danos ao patrimônio público e perigo à vida ou à integridade física de terceiros.
Duas décadas enquadrada pelo artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais e uma série de campanhas de conscientização depois, o crime travestido de brincadeira continua encontrando adeptos nas regiões do Estado colonizadas por açorianos. Em 2017, a PM registrou 140 ocorrências, aumento de 2,56% em relação ao ano anterior. O número de pessoas conduzidas à delegacia disparou de três para 38. Foram recolhidos 14 animais pela Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc), contra 11 em 2016. E os confrontos com policiais saltaram de cinco para nove.
Neste ano, as forças de segurança preparam cercos em locais específicos e prometem olhos abertos para coibir a farra do boi. Conforme disse ao Jornal de Santa Catarina o comandante do 12º Batalhão de Polícia Militar em Balneário Camboriú, tenente coronel Evaldo Hoffmann, fiscalizações serão realizadas na zona sul do município e em Bombinhas, Porto Belo e Itapema. O reforço policial, presente na costa até 2 de abril por causa da Operação Veraneio, vai ajudar nessas ações. O oficial adiantou ainda que a corporação monitora casos de exaltação ao crime na internet para impedir que a farra do boi aconteça e capturar o animal.
O Ministério Público (MPSC) também está envolvido. Segundo o promotor Paulo Antonio Locatelli, coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente, a atuação se dá em duas frentes: preventiva, com concursos de redação nas escolas; e repressiva, com o encaminhamento dos termos circunstanciados ou inquéritos policiais aos promotores, que oferecem as ações penais ou denúncias. Outra iniciativa é buscar, nas leis de cidades como Navegantes, Itajaí, Governador Celso Ramos, Florianópolis, Garopaba e Tijucas, dispositivos que obriguem as prefeituras a ter alguma política pública, no mínimo uma estrutura, para recolhimento de animais abandonados de qualquer porte.
Mas, alertam as autoridades, é fundamental o engajamento do cidadão – principalmente entre o Carnaval e a Páscoa, época em que farras ocorrem de forma mais corriqueira. “Mangueirões” (espécie de coliseus rústicos onde se realizam as farras), transporte irregular de animais e bois sem brincos de identificação da inspeção sanitária devem ser denunciados.
– O problema é que o preso logo é solto. A maioria das penas é convertida em pagamento de cestas básicas ou serviços. Falta vontade política para acabar com a farra, ninguém quer correr o risco de perder voto na próxima eleição – lamenta a presidente da Associação Catarinense de Proteção aos Animais (Acapra), Eliete Leal.
O COSTUME DE CORRER E BRINCAR COM O ANIMAL NA SEMANA SANTA, depois matá-lo e repartir a carne entre os participantes, foi trazido para SC por imigrantes açorianos que chegaram a partir de 1748. De acordo com o livro Bom para Brincar, Bom para Comer – A Polêmica da Farra do Boi no Brasil, do antropólogo Eugênio Pascale Lacerda, tratava-se do boi-na-vara, herança da tourada-a-corda que realizavam na terra de origem. Havia ainda manifestações folclóricas como boi-no-campo, boi-no-mato e boi-no-arame, todas com a mesma finalidade.
“A farra coloca em foco um vocabulário de temas e emoções como a morte e a violência, o desejo e o medo, a invulnerabilidade e a sua demissão, o riso e a excitação. Os farristas vão à farra para ver o que acontece com eles mesmos, isto é, para ver o que acontece quando uma pessoa habitualmente séria, discreta e pacata se vê desafiada, atacada, invadida e corrida por um animal bravo, tendo atrás uma pequena multidão”, escreve o autor com base em depoimentos coletados nas festas das quais participou em 1993, quando morou em Bombinhas para estudar o assunto.
É difícil, até para especialistas, precisar o momento em que um ritual tido como tradicional descambou para a atrocidade. Desde a década de 1980, porém, com a invasão turística do litoral e a expansão urbana, as farras ganharam visibilidade. Antes de conhecimento e fruição quase que exclusivos dos nativos, o que era encarado como expressão típica da cultura popular passou a ser repudiado por veranistas que se tornaram moradores. De folguedo que despertava o interesse somente da população local e de pesquisadores, tornou-se alvo do Judiciário, de organizações ambientais, da Igreja e até da psicanálise.
– Para começo de conversa, o nome farra do boi é uma generalização criada no eixo Rio-São Paulo, que nem sabia direito do que estava falando. Era coisa de gente humilde, simples, de paz. Virou batalha campal com a polícia. Ninguém é a favor da violência – afirma o historiador Joi Cletison, do Núcleo de Estudos Açorianos (NEA) da UFSC.
Em 1988, reportagem despachada de Florianópolis por Fernando Gabeira (sim, aquele mesmo) para O Globo mencionava orelhas cortadas, olhos furados e escoriações pelo corpo do boi. No mesmo ano, a Folha de São Paulo publicava artigo no qual diagnosticava que “serrar a perna de um garrote vivo é, inequivocamente, um ato de castração que só move aqueles que duvidam da própria virilidade”. Em 1991, ensaio da renomada psiquiatra Nise da Silveira no Jornal do Brasil condenava homens se divertindo “com o sofrimento de seres sem culpa, atirando-lhes pedras, mutilando, cegando, inventando toda sorte de práticas sádicas”.
– Antigamente, não era tão sangrenta nem tinha tanta bebida. Hoje está mais para farra do álcool, com todos bêbados maltratando o boi. Quebram o chifre, enfiam pedaços de pau no ânus dele, amarram os testículos, vazam os olhos. Parece que descontam suas frustrações em cima do pobre bicho. Isso não é cultura, é primitivismo, atraso – diz Eliete, ex-promotora, manezinha, 76 anos, aposentada há 23.
A Acapra foi criada em 1981 justamente para combater a farra do boi, conta um de seus fundadores, Halem Guerra Nery. Atualmente à frente do Instituto Ambiental Ecosul, o ex-administrador de empresas gaúcho transferido para Florianópolis para trabalhar na Eletrosul lembra que no início os integrantes da associação eram chamados de “etnocidas culturais” pelos defensores da tradição. Mal sabia ele que o embate iria ganhar muitos contornos, com vitórias na Justiça e derrotas na política.
EM 1987, O GOVERNO DE PEDRO IVO CAMPOS MONTOU UM GRUPO de trabalho para propor soluções que inibissem a farra. Entre os 22 representantes da segurança, educação, cultura, meio ambiente, turismo e comunicação que formavam a equipe, Nery foi convidado a participar em nome da Acapra, então presidida por ele. Na avaliação do ativista, a experiência “poderia ter entrado para a história, mas pelo desinteresse e falta de continuidade que permeia as administrações públicas, depôs contra os dirigentes da época e aqueles que lhes sucederam”.
O relatório do grupo, concluído no ano seguinte, recomendava a adoção pelo ensino público de ações relacionadas à proteção aos animais e às festividades tradicionais, como a inclusão de educação ambiental no currículo e promoção de gincanas e concursos. Segundo Nery, todas as sugestões da Acapra entraram nas diretrizes encaminhadas ao governo – e foram prontamente aprovadas pelo Executivo e pela Assembleia Legislativa (Alesc). No entanto, jamais saíram do papel.
– O MP está fazendo algo parecido agora. Mas, se a partir de 1988 programas de formação de valores para o respeito a todas as formas de vida tivessem sido implantados nas escolas, hoje teríamos menos uma ou duas gerações de farristas – acredita.
Em 1997, após muito debate e pressão, o Supremo Tribunal Federal proibiu a prática. Apesar de a mais alta corte do país ter interpretado que a farra é “intrinsecamente cruel”, para Cletison, do NEA, “não se acaba com uma tradição por decreto”. Pelo contrário: na visão dele, “cada vez acontece mais, de maneira clandestina, fora da Quaresma, com o boi transportado em condições precárias e nenhuma segurança aos participantes”.
Houve também tentativas de regulamentá-la por meio de projetos na Alesc em 2000 (vetado pelo governador Esperidião Amin) e em Governador Celso Ramos em 2007. Na cidade líder em ocorrências, a farra foi regularizada, rebatizada como “brincadeira do boi” e considerada patrimônio cultural. Em caso de excessos ao animal e ferimentos a terceiros, o organizador seria responsabilizado. A pedido do MP, contudo, o Tribunal de Justiça (TJ-SC) suspendeu a aplicação da lei municipal, por inconstitucionalidade.
O VETO JUDICIAL NÃO SEPULTOU A IDEIA DE NORMATIZAR A FARRA do boi – como, explica Cletison, nas touradas a corda dos Açores. Na Ilha Terceira, uma rua é fechada com autorização do poder público, os organizadores pagam taxa de seguro e tem de haver veterinários de plantão, assim como policiais. São quatro touros. Cada um pode correr 20 minutos, depois é substituído por outro, com intervalo de meia hora. Depois, esses touros voltam a seus locais de criação e só podem participar de uma nova tourada após uma semana.
– Por que a farra do boi é proibida e a vaquejada e os rodeios são permitidos, com patrocínio de grandes cervejarias e tudo? – provoca o historiador.
A proposta defendida por Cletison consiste em autorizar a brincadeira em uma rua ou em campo fechado, com proteção às casas. Haveria também quatro animais, meia hora de corrida para cada, com monitoramento de associações de defesa dos animais junto. Nery, do Ecosul, duvida da possibilidade de isso dar certo, pois “teria que convencer o STF de que não ocorreria violência contra o animal, as pessoas e o patrimônio”.
– As touradas na Espanha também são questionadas. Só não acabaram porque movimenta muito dinheiro, enquanto a farra do boi degrada a todos que dela participam. Golpeando o boi, estão exorcizando frustrações, penúrias, salários baixos – completa a vereadora Maria da Graça Dutra (PMDB), eleita para a Câmara de Florianópolis com a bandeira da proteção animal.
As opiniões conflitantes convergem em um ponto: a farra do boi, como acontece hoje, guarda muito pouco de tradição. Ou, como define Eliete, da Acapra, “virou agressão ao animal, à polícia e aos farristas”. No caso do Estado, também prejuízo. Condenado em 1999 a pagar R$ 500 por dia por não cumprir a decisão do STF de proibi-la, limitando-se a “coibir os abusos decorrentes de sua prática” no entendimento da Justiça, o governo catarinense recorreu. Em 2006, saiu a sentença definitiva: culpado. A multa passa de R$ 1 milhão e está na fila de precatórios. Quando saldada, irá para o Fundo de Reconstituição dos Bens Lesados, administrado pelo MP.
(DC, 05/03/2018)
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