A simples designação de “filé de cação” em mercados pesqueiros do Sul pode estar escondendo um comércio ilegal de peixes ameaçados de extinção. Ao comprar a carne, que a olho nu não tem características diferentes dos peixes cuja pesca é permitida, o consumidor pode, sem saber, contribuir para a extinção de tubarões e raias fundamentais para o equilíbrio dos mares no litoral sul do Brasil.
O alerta foi dado por um estudo realizado pela Unisinos com o apoio da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. Entre 2012 e 2013, pesquisadores percorreram pontos de venda em 12 cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina coletando amostras de peixes para depois identificar, por meio de testes de DNA, quais eram as espécies de tubarões e raias mais comercializadas como cação. Eles até desconfiavam que encontrariam espécies ameaçadas entre as coletadas, mas o que descobriram ficou além do esperado.
— Ficamos surpresos com os resultados. Encontramos mais espécies que não poderiam ser pescadas, algumas inclusive protegidas por lei, do que aquelas que são permitidas — explica o professor Christian Sperb, que fez seu mestrado em biologia sobre o tema.
Entre as espécies identificadas no estudo, conforme Sperb, 53% não deveriam ter sido capturadas ou comercializadas. Metade também está incluída na legislação do governo federal que restringe a pesca desses animais, permitindo o comércio apenas para quem obtiver licença que assegure a pesca sustentável e legal dos exemplares.
A explicação para a captura e venda desses animais pode estar no modo como a pesca é feita. Grandes redes jogadas ao mar podem trazer de volta, além dos peixes que os pescadores procuram, também espécies como o peixe-espada e o cação-martelo. A atividade passa a ser ilegal quando os pescadores decidem abater esses peixes em vez de devolvê-los ao mar incólumes. Os pesquisadores não descartam também a possibilidade de que esses tubarões e raias ameaçados sejam o objetivo de alguns barcos, já que, apesar de a carne ter pouco valor comercial, itens como barbatanas têm alto valor no Exterior.
Ao consumidor, restam poucas chances de saber se a carne que está comprando é legal. Não há diferenças perceptíveis em aparência, textura ou sabor, e só foi possível definir a que espécies pertenciam as amostras através de exames genéticos. Diante disso, os cientistas recomendam apenas que, ao comprar filé de cação, se questione o pescador sobre a origem do produto.
Fiscalização ineficiente e falta de informação
A falta de informação sobre a venda de cação nos mercados pesqueiros é apontada como um problema, principalmente, de fiscalização. Faltaria, no Brasil, um controle adequado da pesca, desde os portos e pontos de embarque e desembarque até o trabalho em alto-mar. Com isso, os pescadores poderiam capturar espécies ameaçadas e de caça proibida sem temer represálias.
Para o doutor em Ciências, Genética e Biologia Molecular Victor Hugo Valiati, que orientou o estudo, falta informação sobre a pesca ilegal não só aos consumidores, mas até aos pescadores. Para ajudar a divulgar o problema, ele e os demais pesquisadores envolvidos elaboraram uma cartilha sobre a comercialização de tubarões e raias no Sul. Com isso, eles esperam, além de atrair atenção sobre o tema, alertar autoridades para a criação de melhores políticas públicas destinadas a combater a pesca ilegal.
Questionada sobre a fiscalização, a Secretaria do Desenvolvimento Rural e Cooperativismo do Rio Grande do Sul, que engloba o Departamento de Pesca, Aquicultura, Quilombolas e Indígenas, informou que apenas formula políticas públicas para produção e comercialização, e que a fiscalização da pesca dessas espécies cabe ao Ibama.
O instituto garantiu que acompanha a captura e desembarque, em especial no caso das pescarias com histórico de captura de espécies ameaçadas, e que faz “ações nas plantas industriais de beneficiamento de pescados, no transporte e nos estabelecimentos comerciais que trabalham com esse produto”. Destacando que todos os entes federativos têm competências e dever de agir frente aos ilícitos ambientais, o órgão afirma que muitas de suas ações de rotina dependem das denúncias de cidadãos.
(Diário Catarinense, 19/12/2016)
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