Falta água, falta luz e falta vergonha. Não se conhecem governos que reconheçam o racionamento d’água ou o corte de energia, chamando esses flagelos pelo verdadeiro nome: falta governo.
Durante meio século usaram as estatais da água e da energia como usina produtora do caixa dois para tesoureiros de partidos políticos. Roubalheira histórica e até “cultural”.
Um dia, a conta chegou. O Brasil já não produz megawatts suficientes para prover sua própria demanda – e isso depois de décadas de crescimento industrial próximos do “zero”.
“Foi um raio”, “caiu o sistema da subestação”, “não houve falta de energia, mas um probleminha na distribuição”. Nunca falta água. São “racionalizações do consumo hídrico”. A culpa deve ser do consumidor, que gasta demais.
Ainda bem que não falta a “charge” e o bom humor. O Brasil não seria a pilhéria que é se um senador não apresentasse projeto de lei para “abolir do léxico brasileiro o gerúndio como tempo verbal”. Tanta coisa a ser feita e o senador declarou guerra ao gerúndio? Sua ojeriza a esse tempo verbal decorre das desculpas, sempre esfarrapadas, da burocracia, quando telefona para o Ministério da Fazenda:
Com a lei proposta, burocratas ficariam impedidos de recorrer ao gerúndio. E o senador alimentaria a esperança de obter uma resposta no pretérito perfeito.
– A verba já saiu, sim. É só marcar a data da inauguração e correr pro abraço dos eleitores!
O que salva o Brasil são os chargistas. No campo da piada resumida pelo traço, somos um país altamente civilizado. E o que é o humor? Segundo o filósofo Henri Bergson, é uma forma de punição e de recreação: “O riso deve causar à sua vítima uma impressão nada menos que penosa. Ele não atingiria o seu objetivo se carregasse a marca da solidariedade e da bondade”.
A sátira e a charge – que quer dizer, literalmente “carga!” – são instrumentos tão cortantes quanto uma guilhotina. Mas são igualmente asseados, limpos, de suas lâminas não escorre sangue. O que escorre dos “chargeados” é o pus da vergonha.
Quem quer que tenha subido à ribalta ou que se candidate aos altares do Poder, estará à mercê da charge – esse santo óleo que costuma consolar os fracos e os oprimidos com a verrina do bom humor. Ainda mais agora, depois do martírio do Charlie Hebdo, é o remédio supremo contra qualquer tipo de tirania.
(DC, 21/01/2015)
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