Mesmo com as obras embargadas, discretamente, as fileiras de tijolos sobem no endereço ainda sem número da rua José Durieux, no bairro Córrego Grande. O trabalho que garante emprego aos peões que se escondem ao ver a reportagem, renderá bom lucro quando cada um dos 28 “cômodos” da casa for negociado por R$ 100 mil. Por esse preço, empresários vendem, por exemplo, a “sala e um lavabo” como apartamento, ou quitinete. Assim, projetos aprovados para construções de casas unifamiliares se transformam em verdadeiros condomínios, inclusive com escritura pública, nos bairros mais valorizados de Florianópolis.
Na manhã de hoje, o prefeito Cesar Souza Júnior (PSD) deve esclarecer os pontos da Lei 374/10, que permitirá a regularização de imóveis na Ilha e no Continente. A medida só valerá para as moradias construídas até 2008 — pois a lei é de 2010 —, e pode impactar até 60 mil residências. “São imóveis que por algum motivo não tiveram obedecidos todos os trâmites legais na sua construção”, informou o procurador-geral do município, Alessandro Abreu. Imóveis em áreas de situação de risco, de proteção ambiental ou sob litígio no judiciário também vão se regularizar.
Abreu não quis comentar sobre a liberação de alvarás para construção de imóveis unifamiliares, mas que acabam sendo vendidos como apartamentos. “Esse assunto é tratado diretamente com o diretor do Pró-Cidadão”, disse. Sem regularização, moradores acabam vivendo em locais que sequer possuem sistema preventivo de incêndio obrigatório para condomínios multifamiliares, onde botijões de gás ficam em sacadas, que nos projetos originais são destacadas como marquises.
Em março deste ano, a 28ª Promotoria do Ministério Público instaurou inquérito civil público para investigar pelo menos quatro construções no Córrego Grande e na Carvoeira, que teriam utilizado os mesmos meios e obtiveram alvarás de construção, habite-se e escritura pública. O Notícias do Dia teve acesso à investigação, que mostra como funciona o esquema.
Lote vira prédio que pode render R$ 3 milhões
Na internet, um loft construído em um loteamento é anunciado por R$ 140 mil. O imóvel na rua Nicolau Deschamps, no Córrego Grande, teve projeto e alvará liberados pela prefeitura para ser duas casas unifamiliares, mas é ocupado por 16 moradores distintos. Na prefeitura, moradores registraram pedido de demolição, sob nº 14.987/2009, no entanto, em 2011 o alvará foi expedido e o processo nunca teve andamento.
Situação idêntica também foi constatada na rua das Cerejeiras, na Carvoeira, onde prédio recém-construído ainda tem lugares vagos. Procurada pela reportagem, a proprietária de um dos imóveis disse que a situação é regular, e negou que o construtor tivesse burlado as leis. “Se tivesse irregular não teriam deixado construir”, declarou sem dar mais detalhes. O preço médio de um lote no loteamento da rua Nicolau Deschamps varia em torno de R$ 400 mil, que comercializado em quitinetes podem render até R$ 3 milhões.
As concessionárias Celesc e Casan fornecem energia elétrica e água individualizadas para os lofts. Os cartórios registram escrituras em que os condôminos são proprietários de “fração ideal” de um lote e de uma construção, semelhante ao parcelamento de um edifício em apartamentos, e os “contratos de compra e venda” mostram que os novos moradores adquirem cômodos de uma grande mansão. As imobiliárias divulgam na internet as quitinetes, acompanham potenciais clientes em visita às obras concluídas e em andamento e comercializam as unidades.
Uma das corretoras que aparecem no inquérito trocando e-mails com um suposto cliente, negou que comercialize imóveis no Córrego Grande e se recusou a dar entrevistas. Num trecho da investigação, ela informa a um suposto comprador que os imóveis têm escritura e Habite-se, e que existe uma “fila de espera de estudantes para alugar”.
Silêncio sobre o assunto
Há um ano, a Prefeitura de Florianópolis anunciou abertura de processo para demolição de 76 imóveis construídos de forma irregular no Norte da Ilha. Diferente do que foi constatado no Córrego Grande e na Carvoeira, naquela parte da Ilha a maioria das construções sequer tinham alvará ou habite-se.
Ao ser procurada pela reportagem, a SMDU (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano) pediu mais prazos para verificar as situações, e deve se manifestar nesta terça-feira. As imobiliárias que negociam os imóveis também não se manifestaram sobre as negociações desses imóveis. O engenheiro responsável pelas quatro construções investigadas também não foi encontrado pela reportagem.
Em resposta aos moradores do Córrego Grande sobre a situação da obra na rua José Durieux, a SMDU informou que “o alvará de construção desta obra está vencido desde o mês de abril de 2014, não tendo sido renovado, pois a obra não segue o projeto aprovado originalmente (61.335, de 03/04/2013)”.
(Notícias do Dia Online, 15/09/2014)
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