A reaproximação do mar, para resgatar a relação da cidade com ela mesma, é o conceito do arquiteto Dalmo Vieira Filho, secretário municipal do Desenvolvimento Urbano, para possíveis readequações das áreas ociosas, algumas degradadas, do Parque Dias Velho, no aterro da baía sul, em Florianópolis. E, como tudo não passa do campo das ideias, o mesmo vale para as margens da avenida Aderbal Ramos da Silva, a Via Expressa entre Saco dos Limões e Costeira do Pirajubaé, igualmente subutilizadas por comunidades do entorno e pelo poder público.
Sem planejamento, o aproveitamento dos principais aterros urbanos da cidade se resume à mobilidade dos automóveis. Na Baía Sul, as avenidas Gustavo Richard e Paulo Fontes viabilizam os acessos às pontes de entrada e saída da cidade e às regiões Sul e Leste da Ilha. Interligadas pelos elevados Dias Velho e Karl Hoepcke formam com a Beira-Mar Norte uma espécie de anel viário entorno do Centro. Servem também, ou serviram até 2013, como bolsões de estacionamento em áreas reintegradas ao patrimônio da União.
“Alguns projetos dependem, basicamente, do novo Plano Diretor, aprovado no fim de 2013 e que transformou os dois aterros centrais, antes áreas verdes de lazer, em áreas de operação urbana”, argumenta o secretário. A intenção é discutir grandes projetos, com abertura de novos concursos de arquitetura, desta vez em nível internacional, para implantação de empreendimentos e equipamentos públicos e privados no futuro projeto de expansão da cidade
Dalmo reconhece que os aterros são marcos da expansão mal planejada, transformações impactantes na rotina tradicional da cidade. “Mudanças físicas, culturais e sociais. Agora que já estão integrados à geografia da cidade, resta otimizar o aproveitamentos destas áreas e, de preferência, devolver à cidade a relação mais íntima que sempre manteve com o mar”, diz.
Projeto original previa uso sustentável
Enquanto prefeitura, Estado e SPU (Superintendência do Patrimônio da União) não definem o uso sustentável, os dois maiores aterros da baía sul mantêm as pessoas cada vez mais afastadas. No Centro, o degradado Parque Dias Velho idealizado por Burle Marx na década de 1970, previa áreas de lazer e esporte, locais de convivência ao ar livre e trapiches decentes para acesso ao mar.
Hoje, o terreno de 630 mil m² é ocupado pela estação de tratamento de esgoto que nem sempre opera adequadamente, passarela do samba utilizada apenas no período de Carnaval e o centro de convenções que pouquíssimos eventos traz à cidade. O entra e sai de ônibus na rodoviária Rita Mária e Ticen (Terminal de Integração Central) se junta o enrosco do sistema viário local.
Na Via Expressa Sul, a comunidade da Costeira demorou para desfrutar de campo de futebol e outros equipamentos de lazer. A Escola Estadual Júlia da Costa Neves, na fase de acabamentos, e a creche municipal já em atividades são exemplos positivos de aproveitamento do aterro. Compensam deficiências básicas e históricas.
A margem da avenida voltada para o mar, no entanto, ainda é ociosa. Lá, o exemplo mais clássico da falta de integração na gestão pública são as ruínas da sede da Reserva Extrativista do Pirajubaé. Administrada pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes da Biodiversidade), gestor da área ambienta, a obra está embargada pela prefeitura desde 2011.
Enquanto isso, projetos como o Parque da Ciência da UFSC e o campus do Instituto Federal Tecnológico não saem do papel.
Antes do asfalto, pipas e pescaria farta na draga
Servidora estadual aposentada e conhecida no Morro do 25 pela habilidade na confecção de pipas, Rosemari Laura da Silva, 64, viu o movimento de longe. Mas se lembra que, antes da chegada do asfalto e dos carros, crianças e adultos da Agronômica aproveitaram a área aterrada ao lado da Ponta do Coral e extinta praia do Areião para as tradicionais disputas no ar.
A vizinha Nadir de Souza, 78, jogou fora as fotos amareladas pelo tempo, mas também não esqueceu. Em 1982, moradores da antiga vila da São Vicente de Paula e arredores das ruas Padre Schrader e Frei Caneca, na Agronômica, acordavam cedo para pescar na baía Norte.
Não demorava muito para subirem de volta com as sacolas cheias, sem ao menos molharem a tarrafa. Tainhotas, linguados e siris de todos os tamanhos, e até alguns camarões, sugados pela draga que retirava areia do fundo do mar, eram jogados aos montes ao alcance das mãos. “Não lembro a época, eu era menino. mas tinha muito peixe”, completa o sobrinho Olímpio Pinto dos Santos, 48.
Como o resto da cidade, o bairro mudou muito desde a década de 1980. A ampliação do aterro iniciado em 1960 para construção das atuais pistas da avenida Beira-Mar Norte desafogou a entrada à cidade e acessos à UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e Eletrosul e Norte e Leste da Ilha.
Sumiram a Praia de Fora, as ruínas de um forte do século 18, e um velho estaleiro, talvez última testemunha do passado marítimo. Mesmo assim, a Beira-Mar Norte mantêm uma vista espetacular e a condição de área mais valorizada e nobre da cidade.
Tempo apaga Caminho das Águas
Quem passa com pressa pelo centro histórico de Florianópolis não percebe os resquícios da faixa azul, desbotada pelo tempo, que atravessava os fundos do Mercado Público e durante algum tempo demarcou três quilômetros de asfalto, paralelepípedos e meio-fios. Quem viu, demorou até saber que a pintura feita a pincéis por 20 voluntários era uma intervenção do artista plástico e músico capixaba Piatan Lube, ainda desconhecido por estas águas.
Tampouco imaginou que a intenção foi remarcar a antiga linha do mar, o limite da maré cheia antes das alterações impostas pelos aterros nas baías. Subsidiada pelo edital de Arte e Patrimônio do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a obra foi pintada em 2009. Mas logo desapareceu, restando um ou outro fragmento incompreensível em trechos menos pisoteados por homens e veículos.
Ignorada exatamente como a memória urbana, a faixa surgiu depois de pesquisa sobre a margem oceânica e áreas aterradas em Florianópolis e Vitória/ES, cidade do artista. A ideia é simbolizar, mesmo que de forma efêmera, intervenções e alterações radicais na relação entre a arquitetura, as pessoas e o meio ambiente.
“É poesia, arte e protesto”, define o artista sobre o projeto Caminho das Águas, que não se resume a pinturas apagadas pelo vaivém das duas cidades. Faixa azul que em Florianópolis chegou a ser confundida como rara manifestação pacífica de uma das torcidas organizadas do Avaí F.C., na época o representante catarinense na Série A.
Expansão para o mar começa no século 19
O alargamento da rua rua do Príncipe, a Conselheiro Mafra de hoje, e do largo do Mercado e da Alfândega, na orla sul, foi o primeiro aterro costeiro de Florianópolis, em 1868. É o começo das obras de maior impacto visual no centro urbano que se formava. Duas décadas depois, surgem os cais e aterro das praias do Menino Deus, da Boa Vista e do Forte de Santa Bárbara. Na época, além de proteção contra a força do mar, os aterros serviam para esconder os primeiros depósitos cloacais da cidade.
No papel, a mudança do perfil costeiro da cidade estava planejada desde 1842, ano em que a Lei 170 foi sancionada pelo presidente da província, Antero José Ferreira de Brito. Mas só em abril de 1888, uma festa no adro da capela do Menino Deus inaugurou o Largo 13 de Maio. O nome escolhido, obviamente, foi homenagem à abolição da escravatura, assinada um mês antes pela princesa Isabel. Mais tarde, virou Praça da Bandeira, dos Três Poderes e hoje é Centro Cívico Tancredo Neves, sede da Assembléia Legislativa e do Tribunal de Justiça.
De acordo com a arquiteta Elaine Veras da Veiga, no livro Florianópolis – Memória Urbana, até o século 19, não existiam conceitos precisos para nortear o crescimento e a expansão da cidade. “A área adensara-se sem planejamento prévio, e as curvas da malha viária foram condicionadas pela sinuosidade dos córregos, pela linha das marés e pela declividade dos morros”, escreveu sobre a região a leste da Praça 15 de Novembro.
Colina da praça vira aterro na baía
O material utilizado no aterro das praias Menino Deus e Boa Vista foi retirado do rebaixamento da Praça 15 de Novembro, originalmente uma colina. A empresa Alexandre Natividade cobrou 70 réis por metro cúbico, escreve Elaine Veras da Veiga. Na década de 1920, durante as escavações para implantação dos pilares da cabeceira insular da ponte Hercílio Luz, todo o material retirado foi transportado para o aterro da Prainha. Inclusive o cemitério e parte do primeiro depósito de lixo da cidade.
Até 1880, a faixa de marinha na Ilha seguia em linha reta entre as bordas das atuais ruas Conselheiras Mafra e João Pinto. Ali, na ponta ao lado da foz do rio da Bulha (canal da Hercílio Luz), mais tarde foi erguido o Forte Santa Bárbara e foi instalada a Capitania dos Portos de Santa Catarina – sede da Fundação Municipal de Cultura Franklin Cascaes na administração de Dário Berger na Prefeitura da Capital – 2012.
Nos dias de ressaca, o mar batia nos molhes da rua José da Costa Moellmann, o muro lateral do IEE (Instituto Estadual de Educação), fundado em 1892, na praia da Boa Vista. A linha da maré cheia contornava o pequeno costão da ladeira do Menino Deus, e a partir dali, a baía de água calma se estendia ao Sul. Banhava a encosta do maciço central do Morro da Cruz até formar a prainha que dá nome ao bairro ao pé do Mocotó, em direção a José Mendes e Saco dos Limões.
Manguezais aterrados
* Rio Pau do Barco/Saco Grande: Vem desaparecendo com aterros ilegais ao lado da SC-401. Toda a área a leste da rodovia já foi aterrada. A oeste da estrada, na parte que mantém contato com o mar, ocorre o mesmo processo. Recebe esgotos sem nenhum tratamento nos bairros Monte Verde, João Paulo e Saco Grande 2.
* Bacia do Itacorubi: É o manguezal mais próximo do aglomerado urbano. Sofreu sucessivas reduções para abertura da avenida Beira-Mar Norte. Durante mais de 30 anos, entre 1958 e 1990, 12 hectares foram ocupados pelo lixão da cidade, atual estação de transbordo da Comcap (Companhia de Melhoramentos da Capital). Outra parte deu lugar ao loteamento Santa Mônica.
* Rio Tavares: Teve a área reduzida principalmente com a implantação da Base Aérea e do Aeroporto Hercílio Luz, por meio de aterros e drenagens artificiais. A rodovia Diomício Freitas forma um dique de represamento das águas da maré. O bairro de Carianos é uma das áreas aterradas, e na porção leste e sul perdeu área pelos desmatamentos e drenagens para pastagens.
* Tapera: Redução de área principalmente em função da drenagem para a formação de pastagens e, mais recentemente, para a construção de moradias.
A Ilha
423 km² – território original
438,90 km2 – território atual
172 km – extensão da costa
Noícias do Dia Online, 06/01/2014)