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07/11/2013
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Bianca Santana é professora, formada em jornalismo, especializada em educação e tecnologia, e tem três filhos – o que fica evidente logo à entrada de sua casa no bairro de Pinheiros, em São Paulo. O notebook, de onde trabalha todos os dias, divide espaço na mesa com os brinquedos do Lucas, o filho mais velho, e do Pedro, o do meio. Na cestinha, a Cecília, aos 7 meses, só deixa a mãe trabalhar se estiver ouvindo música. A rotina é corrida: ela acorda, prepara café da manhã para os filhos e leva os meninos a pé para a escola – a casa foi escolhida tendo em mente essa possibilidade. De volta, ela deixa prontos os almoços deles, dá de mamar para Cecília e a faz dormir; daí começa a trabalhar. “Daí começa a trabalhar?”, pergunto. Bianca sorri: “é, tem todo esse trabalho ‘invisível’ antes.”
Essas pequenas tarefas cotidianas não entram na lista de pendências de trabalho da Bianca – e aposto que nem nas suas. Uma das explicações para isso está esboçada no livro A Condição Humana, da escritora e filósofa alemã Hannah Arendt, em que ela define os tipos de trabalho existentes. O primeiro deles é o labor, esse chamado por Bianca de invisível, que nunca acaba: varrer o chão, podar as plantas, colocar o lixo para fora, etc. O segundo é a obra, a atividade que tem um fim em si mesma, em que conseguimos expressar nossos talentos e a que nos dedicamos com a alma. Por fim, Hannah define como trabalho a atividade remunerada, que se estabelece a partir de uma relação econômica.
Foi essa terceira categoria que se consolidou durante a Revolução Industrial na Inglaterra do século 18 como modo de garantir a sobrevivência em territórios urbanos – e, portanto, moldou as cidades modernas. De lá para cá, o labor e a obra passaram a ser vistos como algo reservado apenas às empregadas domésticas e aos artistas, enquanto o trabalho ganhou um valor moral e obrigatório. É nessa lógica que vivemos eu e você. E a Bianca.
O que ela não tardou a perceber é que ter hora certa para começar e parar de produzir não funcionava em sua vida. “Em 2007, eu era funcionária de uma editora e tinha que seguir a regra da jornada de trabalho, mas isso me incomodava”, conta ela. “Um simples exemplo é que quando o correio abria, eu já estava a caminho do trabalho, e quando fechava, eu ainda estava trabalhando, então eu simplesmente estava impedida de postar qualquer coisa”, diz ela, aos risos.
Bianca não se ressente desse período, fundamental para que ela aprendesse a se tornar dona de sua própria rotina, ditada hoje não por regras corporativas, mas pelos desejos e necessidades de sua vida pessoal. “Ano passado, grávida da Cecília, eu chegava a trabalhar 12 horas por dia”, conta Bianca, referindo-se, claro, às suas atividades remuneradas, não ao labor. “Depois que ela nasceu, eu passei uns quatro meses trabalhando pouco mais do que duas horas por dia”, diz ela. “Foi ótimo alternar atividades profissionais leves com a maternidade, o que deixou minha relação com a minha filha também muito mais saudável”, conta Bianca.
Ela defende que parar bruscamente de trabalhar pode ser um choque para mães que, de uma hora para outra, passam a apenas se dedicar aos filhos, durante a licença maternidade, para em seguida voltarem à rotina das oito horas diárias de trabalho. Bianca achou uma medida de transição muito mais branda para conciliar a maternidade ao trabalho.
Fazer sentido
A vontade de se sentir realizada no trabalho também foi a força-motriz por trás da mudança na vida da jornalista, ciclista e cicloativista Evelyn Araripe. Depois de passar por estruturas mais rígidas de rotina de trabalho – e perceber que elas não serviam em sua vida – ela se juntou a alguns amigos para criar oGangorra, um espaço de co-working interdisciplinar, que reúne pessoas que compartilham da paixão por pedalar em São Paulo. “Hoje, não é nem que eu viva para trabalhar ou trabalhe para viver, eu apenas vivo”, conta Evelyn.
Foi também a relação com a cidade que fez Rodrigo Bandeira de Luna abandonar as agências de publicidade para criar a ONG Cidade Democrática. Seu trabalho é fazer conexões entre a sociedade civil organizada (e desorganizada também, como ele gosta de dizer), o poder público e a iniciativa privada para diagnosticar problemas e potenciais e, a partir daí, criar projetos que deixem um bom legado nas cidades.
Uma das atividades da ONG foi o Plano Diretor do bairro da Pompéia, em São Paulo, totalmente viabilizado por financiamento colaborativo, no site brasileiro Catarse. Aliás, o próprio Catarse foi criado em 2010 por dois estudantes de administração, Diego Reeberg e Luís Otávio, que queriam “fazer projetos legais darem certo no Brasil”. Em vez de buscarem nos estágios existentes na área de administração a entrada para o mercado de trabalho, criaram seu próprio caminho e hoje administram o maior site de financiamentos desse modelo no Brasil, com mais de 500 projetos bem-sucedidos.
A raíz de um trabalho que faça mais sentido é recuperar aquele segundo conceito de Hannah Arendt, o da obra. “Isso só é possível quando a relação com o trabalho não é puramente utilitarista”, defende Rita Monte, jornalista, iogue e integrante da ONG Semente Una. “Se a pessoa enxerga o próprio trabalho, intelectual e braçal, como algo apenas a ser usado, vendido, certamente será mais difícil de expressar seus talentos e atribuir sentido a esse trabalho”, analisa. Rita é uma das criadoras do Programa de Expressão de Potenciais (PEP), uma consultoria feita por ela e outros da Semente Una a empresas para ajudar os funcionários a encontrar e expressar seus talentos. Não é à toa que ela se apresenta como uma “empreendedora servidora”.
Trabalhando menos
Essa nova lógica de trabalhar envolve atribuir sentido às atividades profissionais, conseguir descobrir e expressar seus talentos e tomar as decisões sobre a própria rotina. Mas ao contrário do que possa parecer, não se trata de uma possibilidade restrita aos empreendedores. Funcionários de empresas mais tradicionais também podem entrar nessa. É isso que a Semente Una tenta possibilitar com o PEP. E há uma maneira ainda mais simples de fazer isso – ou pelo menos começar esse processo: trabalhar menos. Isso porque, se é verdade que há um levante de novas possibilidades de trabalho, ele ainda se limita a uma parcela reduzida das pessoas. “São poucos os que têm essa escolha”, reforça o professor de economia da PUC-SP, Ladislaw Dowbor.
Como bom economista, Dowbor sabe olhar para essas novas lógicas de trabalho com lentes macro, de onde fica claro que os empreendedores criativos ainda são minoria, enquanto prevalecem em maior número os funcionários em empresas com uma estrutura corporativa clássica. E aí, quem manda são os patrões. Por isso, ele defende que soluções em larga escala contra a perda da qualidade de vida pelo excesso de trabalho passam necessariamente pela diminuição da jornada profissional.
Dowbor evoca um texto do economista inglês John Maynard Keynes (1883 – 1946) escrito aos seus netos (nós), dizendo que no futuro (hoje) só seriam necessárias 15 horas de trabalho semanais para manter a economia estável. Keynes imaginava que as inovações tecnológicas somadas ao avanço econômico dos países diminuiriam a necessidade de trabalhar para que todos tivessem acesso às necessidades básicas. “A questão é que perdemos essa noção de ‘básico’ – e hoje produzimos bens de consumo em excesso, sem termos tempo para aproveitá-los”, reflete Dowbor. O economista lembra que essa frustração é acompanhada de uma enorme disparidade na distribuição de renda, o que nos leva ao segundo argumento para reduzir a jornada de trabalho: a necessidade de distribuir a oferta de empregos. “Só assim evitamos pessoas desesperadas por um emprego ou chantageadas pelo medo de perdê-lo”, defende Dowbor. Essa ideia é igualmente abraçada pelo filósofo italiano Domenico de Masi. “Temos que adotar a política do ‘trabalhar menos para trabalharem todos’”, afirma de Masi.
O New Economics Foundation (NEF), um centro de investigação independente que produz estudos sobre a economia do bem-estar, propôs que a Grã-Bretanha adote uma jornada de 21 horas de trabalho semanais. O NEF cita dados de um estudo do EU Working Time Directive, que mostra que os ingleses em idade economicamente ativa gastam, em média, 20 horas por semana com trabalho. O valor é baixo porque nessa conta estão inclusos os desempregados.
Quando é medida a jornada semanal dos trabalhadores remunerados, o tempo varia entre 37 e 49 horas mensais. “Isso mostra que a economia se sustentaria da mesma maneira se mais pessoas trabalhassem durante menos tempo”, diz Dowbor. A ideia não é simplesmente pensar em uma semana de 21 horas de trabalho, mas em como 1092 horas podem se dividir ao longo do ano, com fluxos de produção intensa intercalados por épocas mais calmas, o que flexibilizaria o trabalho de acordo com a vida de cada um. Algo que Bianca, lá do começo do texto, já nos ensinou ser possível. Trabalhou mais durante a gravidez para poder se dedicar à chegada de Cecília e, então, retomar a produção aos poucos.
É claro que a simples redução da jornada não garante, em si, uma melhoria qualitativa no trabalho e na vida das pessoas. O ponto principal de trabalhar menos é ter mais horas livres para ler, dormir, se exercitar, aproveitar a família e os amigos – o que pode ser uma ótima maneira de se conectar com os próprios talentos e, quem sabe, inventar seu próprio trabalho.
Redescobrir a cidade
Curiosamente, esse processo geralmente implica uma mudança na relação das pessoas com suas cidades – ou é potencializado por ela. Quando organizou sua rotina de trabalho para levar os filhos à pé para a escola, Bianca descobriu que São Paulo tinha árvores frutíferas. Aliás, é para disseminar essa descoberta que a designer Juliana Gatti criou a empresa Árvores Vivas, que faz expedições para reconhecer e mapear árvores nativas da cidade. E os benefícios não são apenas individuais, mas também públicos: cidades onde as pessoas trabalham menos têm mais qualidade de vida.
Caso de Utah, nos Estados Unidos, berço do “Working4Utah”, que dividiu a jornada de trabalho de 40 horas semanas em apenas quatro dias – assim os trabalhadores ganharam um fim de semana de sexta a domingo. Além de 82% dos trabalhadores terem aprovado o novo sistema e se dizerem mais produtivos nele, as cidades ainda lucraram. O programa divulgou dados que apontam que, no Estado de Utah, os quatro dias de trabalho semanais reduziram, no primeiro ano, 5 milhões de quilômetros percorridos de carro, o que representa uma economia de quase R$ 3 milhões.
Já em Guiné-Bissau, na África, foi instituída uma jornada de trabalho das 7h às 12h e das 15h às 18h. “Esse intervalo de almoço fazia as pessoas chegarem muito mais descansadas e focadas para fechar o dia de trabalho”, diz Ladislau Dowbor. “No final do expediente, íamos passear e aproveitar a cidade”, conta. Trabalhar menos, com mais qualidade, e descobrir uma cidade que você não imaginava que existia é possível. É verdade que depende, em parte, da adoção de políticas públicas que permitam essa nova lógica. Mas abrir a mente para novas possibilidades é igualmente importante nesse processo.
(Natália Garcia, Planeta Sustentável, 07/09/2013)

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