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Mobilidade urbana: como desatar este nó?

“Isto é São Paulo, a cidade do trabalho, o gigante de concreto armado que se torna dia a dia maior”, introduz o locutor de voz profunda e limpa da era do rádio enquanto passam imagens da multidão nas ruas a caminho do trabalho. “Porém, há dramas que não se podem ocultar. E, entre eles, a luta pelo transporte, o sofrimento diário com as filas, a espera angustiosa pelos ônibus que tardam – e eles não bastam, pois seu número não cresceu no mesmo ritmo vertiginoso da expansão da cidade”, continua ele.
Poderia ser um retrato atual da maior metrópole do país. Mas é a São Paulo de 1952, então com 2,5 milhões de habitantes, em um documentário restaurado do fotógrafo francês Jean Manzon sobre a demanda de transporte público na época. No fim do filme, ele pergunta: “Quando será o dia em que São Paulo não mais verá quadros como este?” E 50 anos depois, em 1º de junho de 2012, uma combinação de acidentes nas principais ruas e avenidas, chuva e excesso de carros criou o maior congestionamento da história: 295km de filas. A cidade que não pode parar anda a passos de tartaruga.
O cenário piora a cada dia. Uma hora, esse nó vai estrangular a capital paulistana. São Paulo tem cerca de 11,4 milhões de habitantes e uma frota de 4,8 milhões de automóveis. Sua população cresceu cerca de 8% de 2001 até 2012, enquanto a frota aumentou 60,1% entre 2003 e 2012. Mais de 2,5 milhões de veículos foram colocados nas ruas, entre eles 1,5 milhão de carros particulares e 510 mil motocicletas, que, durante o mesmo período, aumentaram 197,3%. Na média, são quase 22 mil veículos por mês (730 por dia) a mais.
O preço que se paga por esse absurdo é elevadíssimo. Marcos Cintra, economista e vicepresidente da Fundação Getúlio Vargas, criou, em 2002, um estudo apelidado de “custo São Paulo”, que calcula o prejuízo causado por seu trânsito. Segundo dados consolidados de 2012, estima-se que ele seja de cerca de 40 bilhões de reais ou aproximadamente 80% do PIB municipal, que é de 52 bilhões. Só dos chamados custos pecuniários (preços da gasolina por quilômetro rodado, desgaste dos veículos e manutenção de vias, além dos gastos com poluição e seus efeitos nocivos à saúde pública) perde-se cerca de 10 bilhões de reais ao ano. O que não se ganha, ou seja, os custos de oportunidade (soma de tudo aquilo que a cidade deixa de consumir, produzir e arrecadar enquanto sua força de trabalho está estagnada no trânsito), representa mais 30 bilhões. “Isso sem falar na parcela da população presa dentro dos ônibus”, explica Marcos Cintra. No Rio de Janeiro, estudo semelhante feito pela UFRJ revela que o tempo perdido no trânsito gera um prejuízo de até 12 bilhões de reais ao ano à capital fluminense.
O caos do trânsito começa a alastrar-se. Em tempos de expansão de crédito e redução de impostos para a indústria automotiva, houve uma série de quebras de recorde na venda de veículos, de modo que outras cidades brasileiras começam a enfrentar crises de mobilidade. Um estudo do Observatório das Metrópoles, órgão de pesquisa ligado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, aponta que, em dez anos (de 2001 a 2011), a frota das 12 principais regiões metropolitanas do país, incluindo seus 239 municípios-satélite, cresceu, em média, 77,8%. São, no total, 20,5 milhões de veículos a mais. Manaus lidera o ranking. No período, sua frota aumentou 141,9%, seguida por Belo Horizonte (108,5%), Distrito Federal (103,6%) e Goiânia (100,5%). Um dos problemas mais sérios atinge a região metropolitana de Belém do Pará, onde, na última década, o número de automóveis cresceu 97,3% – enquanto o de motos saltou 708,3%. A se manter nesse ritmo, estima-se que em 2020 haverá 1 milhão de carros e 3,2 milhões de motos. Levando em conta só a capital paraense, isso significaria um carro para cada quatro habitantes – índice igual ao de São Paulo de hoje.
Como as vias não aumentam na mesma velocidade, o resultado é óbvio: a população leva bem mais tempo para se deslocar. Segundo estudo de Rafael Pereira, técnico de pesquisa e planejamento do Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em coautoria com Tim Schwanen, da Universidade de Oxford, que compara dados de dez regiões metropolitanas brasileiras e 20 estrangeiras com mais de 2 milhões de habitantes, o tempo médio de percurso entre a casa e o trabalho no Rio de Janeiro e em São Paulo é de 43 minutos – 31% maior que em outros países. Essas capitais só ficam atrás de Xangai: 50 minutos. Em Brasília e Recife (média de 37 minutos), gasta-se mais que em Nova York, Tóquio e Paris.
A pesquisa revela ainda que, em alguns períodos, obras e investimentos em transporte conseguiram reduzir o tempo perdido no trânsito, mas, depois, tudo volta à estaca zero. “No Rio de Janeiro, a construção da linha Amarela e de nove estações de metrô melhorou um pouco. O mesmo ocorreu em Brasília, onde, depois de muito atraso, o metrô começou a operar em 2001, além da construção da ponte Juscelino Kubitschek, mais uma ligação entre o Lago Sul e a região central da cidade”, comenta Pereira. “As melhorias, porém, duram pouco. Depois de alguns anos, as vias se saturam de novo, e o trânsito empaca”, conta. Segundo ele, é o que ocorreu em São Paulo em 2004, em razão do rodízio de veículos, e depois, em 2009, com a ampliação da Marginal Tietê, em que foram gastos cerca de 2 bilhões de reais. “Fazer política de transporte no Brasil tem sido como enxugar gelo: mesmo aumentando a oferta de infraestrutura, ainda fica aquém da demanda. Estamos sempre correndo atrás do prejuízo”, explica Pereira.
Um bom exemplo disso é que o ocorre na capital paulista. A prefeitura calcula que, entre 2002 e 2011, o volume de usuários de transporte coletivo da cidade deu um salto de 86%, pulando de 2,8 milhões para 5,2 milhões de pessoas por dia. No mesmo período, houve um aumento de apenas 50% na extensão e no número de estações do metrô com a construção de mais uma linha.
Sinal evidente de que o transporte coletivo está aquém das necessidades é o que acontece todos os dias na estação Corinthians-Itaquera, zona leste paulistana, no extremo da mais movimentada linha de metrô. Só para passar pelas catracas, os usuários demoram de 30 a 40 minutos. Para piorar, o número de ônibus municipais, que servem 55% do total de passageiros, é o mesmo desde 2003: cerca de 15 mil. “Há uma inversão da lógica em nosso modelo de urbanismo. Primeiro, coloca-se o povo para morar longe. Depois, tenta-se organizar o caos pelo transporte”, afirma Lúcio Gomes Machado, professor da FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Para ele, há outro grave problema. “Privilegiou-se o uso do transporte individual em detrimento do coletivo. Isso fica explícito no projeto de Brasília, cidade construída com avenidas longas e amplas para andar de carro, e nos projetos de São Paulo, com viadutos horrorosos, como o Minhocão”, ressalta o professor Machado.
Começam, porém, a surgir algumas medidas para reverter esse cenário. Há pouco mais de um ano vigora a Lei no 12 587/2012, instituindo as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, que buscam priorizar os meios de transporte não motorizados e os serviços públicos coletivos. Até 2015, as prefeituras de cidades de grande porte deverão apresentar revisões em seus planos diretores para atender a essas exigências. Para isso, o governo federal pretende, ainda, investir cerca de 32 bilhões de reais em mobilidade urbana como parte do pacote do PAC – Plano de Aceleração de Crescimento. Para a Copa do Mundo de 2014, preveem-se mais de 12 bilhões de reais aplicados na implantação de projetos de mobilidade – quase 50% do total a ser investido no evento internacional.
Uma das soluções passa pelo investimento no transporte público de alta capacidade, como o metrô, que pode deslocar até 80 mil pessoas por hora. É o que faz Xangai desde 1995. Hoje, seu sistema tem 437 km de extensão e o maior ritmo de expansão no planeta: em média, 16,2 estações abertas e 24,3 km inaugurados por ano. Nova Délhi, na Índia, em menos de 11 anos de operação, tem 193 km. O metrô de Seul, capital da Coreia do Sul, iniciou seu funcionamento em 1974. Hoje, é o maior do mundo, com 560 quilômetros, enquanto o paulistano, inaugurado no mesmo ano, tem apenas 74. Sua maior desvantagem, porém, está no preço. A ANTP – Associação Nacional de Transportes Públicos calcula que cada quilometrô de metrô construído custe entre 80 milhões e 90 milhões de dólares. Para ter uma ideia de tal empreendimento, a China, que hoje possui mil quilômetros de metrô, investirá mais 146 bilhões de dólares para, até 2015, construir outros 2 mil apenas em Guangzhou e Xangai. “Não precisamos gastar tanto. Ideias boas e baratas podem ser encontradas aqui mesmo, como é o caso do BRT – Bus Rapid Transit. Em Recife, por exemplo, essa é uma das opções mais promissoras”, afirma César Cavalcanti, diretor da ANTP no Nordeste.
Quase 30 vezes mais barato que o transporte subterrâneo, menos poluente e mais flexível, o conceito de Bus Rapid Transit, sistema de ônibus de alta capacidade que opera em faixas exclusivas e funciona como o metrô, virou o preferido entre governos e especialistas em mobilidade, tornando-se modelo de exportação. Implantado na década de 1970 em Curitiba, onde é chamado de “Ligeirinho”, o BRT foi desenvolvido pelo urbanista, e então prefeito da cidade, Jaime Lerner, como opção atrativa, barata e confortável para cidades com mais de 500 mil habitantes. “Desde então, ele foi tão aperfeiçoado que cada BRT funciona como uma célula inteligente. A tecnologia trouxe grande ganho operacional e redução de custos se comparada à do metrô. Além disso, a capacidade de transporte em uma mesma extensão de faixa é dez vezes maior em relação ao carro, com a vantagem de não parar no trânsito”, explica Antônio Lindau, presidente da Embarq Brasil, entidade criada pelo World Resources Institute (Instituto de Recursos Mundiais) para promover a mobilidade sustentável.
A ideia do BRT popularizou-se a partir dos anos 2000 – hoje há mais de 275 corredores, ou cerca de 4 mil km, em 154 cidades nos cinco continentes, atendendo 25 milhões de passageiros por dia. Em cidades que sofreram transformações significativas nos últimos anos, como Bogotá (Colômbia), onde o BRT é chamado de Transmilenio, ele tornou-se o modal de preferência, e transporta todos os dias 1,8 milhão de passageiros. Do ponto de vista ambiental, o Metrobus da Cidade do México, com capacidade para transportar 775 mil passageiros por hora, demonstra que o sistema também ajuda a reduzir as emissões de gás carbônico. “Lá, onde a quarta linha foi inaugurada em 2012, estima-se que houve redução de 110 mil toneladas de CO2 emitidas por ano”, conta Lindau, que coordenou um projeto de simulação virtual do BRT no Rio de Janeiro, essencial para demonstrar que a cidade seria capaz de receber os Jogos Olímpicos em 2016. O projeto carioca inclui a integração com 26km de VLT – Veículos Leves sobre Trilhos e metrô. A primeira linha, a TransOeste, de quase 56km de extensão, foi entregue em 2012. “Até 2014, serão quatro linhas em operação – uma delas passa pela avenida Brasil, e terá 60km. Será uma das maiores linhas de BRT no mundo”, explica ele. Em Belo Horizonte, onde os projetos estão em ritmo acelerado, o sistema está sendo implementado nas principais avenidas, e, em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad prevê a construção de 150km de faixas para o BRT.
Para desafogar o trânsito, há ainda quem estude a possibilidade do uso dos rios. É o caso de Alexandre Delijaicov, outro professor da FAU-USP, autor de um projeto que mostra a viabilidade de um hidroanel metropolitano para São Paulo – uma rede de vias navegáveis, composta pelos rios Tietê e Pinheiros, integrada a um canal de mobilidade sustentável. “Em Copenhague, na Dinamarca, e em Zurique, na Suíça, 30% das viagens diárias das pessoas são realizadas de bicicleta. Até porque, em cidades como essas, é caríssimo estacionar. Em Paris, é quase impossível”, diz ele, que mora em Nova York, onde uma vaga pode custar até 1 mil dólares por mês em regiões como Manhattan.
Retirar os carros das ruas é fundamental para dar mais fluidez ao trânsito. Por isso, iniciativas para desencorajar o transporte individual têm sido colocadas em prática em várias metrópoles do mundo. Em San Francisco, nos Estados Unidos, por exemplo, foi criado o SF Park, programa que, por meio de parquímetros eletrônicos, altera o preço das vagas de estacionamento conforme o horário, o tráfego e os eventos que estão ocorrendo, como shows e jogos. Em Londres, há o pedágio urbano. No distrito de Canary Wharf, em que trabalham 100 mil pessoas, há apenas 3 mil vagas. O The Shard, o maior arranha-céu da União Europeia, com 310 metros de altura, localizado no distrito financeiro da cidade que abriga centenas de escritórios e caríssimos apartamentos, possui só 48 espaços para estacionar.
Nesse sentido, no Brasil, andamos na contramão. “A nova lei de mobilidade que veio de Brasília não percorreu todos os caminhos até ser realidade em nossas metrópoles. A lei municipal dos polos geradores de tráfego em São Paulo, que obriga os novos empreendimentos a planejar um número mínimo de vagas em relação ao total de metros quadrados construídos, é uma das mais absurdas”, reclama Maurício Lopes, promotor de habitação e urbanismo do Ministério Público de São Paulo. Ele cita o caso de um shopping que está sendo erguido na região da avenida Paulista, no qual o grupo francês responsável pela obra será obrigado a reservar mais de 2 mil vagas. O grupo pede a revisão da lei, já que o empreendimento será em uma das regiões mais congestionadas e supridas de opções de transporte coletivo. “Se o Masp, que é um patrimônio tombado, fosse construído hoje, teria sido embargado por falta de vagas para estacionar”, comenta o promotor militante da não motorização.
Outro problema, segundo Lopes, além da baixa qualidade do transporte público e da política de estacionamento, são os 35 mil km de calçadas pouco convidativas para caminhadas. Em 1985, o prefeito Jânio Quadros tornou as calçadas paulistanas responsabilidade legal dos munícipes. A falta de manutenção, inclusive, está sujeita à multa, embora a fiscalização inexista. No momento, há um projeto na Câmara dos Vereadores que reverte essa decisão. “Se a via pública, ou seja, o leito carroçável, é responsabilidade da prefeitura, por que ela não deve cuidar também da calçada, que é do pedestre?”, questiona o promotor.
Desde a década 1970, países como Israel, Inglaterra, Suécia e Japão têm apostado em empreendimentos mais amigáveis para o pedestre, como os espaços woonerf, ou pátio/vizinhança, que foram desenvolvidos na Holanda. São áreas de paisagismo bem cuidado, sem placas para carros e sem distinção entre calçada e rua, o que prioriza a caminhada e a bicicleta. Na Alemanha e na Holanda, já foram feitos mais de 3 500 espaços assim. “Acredito que até 2050 veremos a era das ‘ruas completas’, que fornecem espaço e prioridade a pedestres, ônibus e ciclistas, além de motoristas”, comenta Paul White, presidente da ONG nova-iorquina Transportation Alternatives.
White acredita que ruas melhores são a proposta mais promissora para reocupar os centros urbanos com novos moradores. Ao fechar, nos últimos anos, áreas como a Times Square e a Broadway para os automóveis, Nova York tem demonstrado como se pode acabar com a dependência do carro após muito tempo investindo em viadutos e túneis, que só traziam mais trânsito à cidade. “Quando a velocidade do automóvel excede os 35 km por hora, a qualidade humana nas ruas começa a perder; o barulho aumenta, tornando as conversas mais difíceis; além do perigo que cresce de forma exponencial”, afirma. Esse cenário torna a vida arriscada e desconfortável para quem não está em um veículo motorizado. “Quando as pessoas começam a evitar a rua, aquele ciclo virtuoso de gente atraindo gente se perde, até que, por fim, isso tudo desaparece”, alerta White.
(Planeta Sustentável, 11/07/2013)

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