Uma cidade com cerca de 4 mil moradores, por onde passam até 100 mil veículos por dia e onde um único evento de virada do ano reúne 300 mil pessoas.
Tudo isso sobre uma faixa de cinco quilômetros e com três diferentes nomes. Planejada como rodoviarista (via rápida) e desde os anos 1970 em constante mutação, a Avenida Beira-Mar Norte é um dos pedaços que melhor retrata a Ilha mutante.
Ali, onde os ventos da maritimidade tocam o rosto dos caminhantes, espreme-se parte de um passado pouco percebido pela multidão acelerada. Moradores desafiam a arquitetura vertical dos prédios, e de suas casas, assistem às modificações impostas pela urbanização. Gente dos tempos dos banhos na Praia do Müller, da água do mar batendo na porta de casa, das pescarias, do Campo da Liga. Pessoas que por motivos de ordem pessoal ainda não cederam à especulação imobiliária, evitam falar em preço e desconversam diante de uma proposta de venda. Moradores que acompanham a singularidade da avenida, a qual abriga pescador e governador, ranchos e suíte presidencial, churrascos, sushis e sashimis.
Pessoas que sobre o traçado aterrado, começando perto do Terminal Rita Maria até o Centro Integrado de Cultura, convivem com lembranças e do que melhor ou pior a Avenida Beira-Mar Norte pode oferecer. Estejam esses sobre a via genuína, a Jornalista Rubens de Arruda Ramos, ou nas curvas e retas da Osvaldo Rodrigues Cabral e Irineu Bornhausen. Acostumados a abrir correspondências, onde na escrita do endereço os parênteses se abrem para (Avenida Beira-Mar Norte).
(Por Angela Bastos, DC, 05/08/2011)
Saudade do mar pertinho
Final do século 19. Desterro avança em direção ao que hoje é a Beira-Mar Norte. A Praia de Fora, também chamada de Müller, era um dos lugares preferidos da população. Firmou-se como atração turística. Colarcina Matos Lopes, 82 anos, lembra bem:
– A gente era moça e vinha tomar banho na praia. Existiam poucas casas e nem passava pela cabeça que um dia seria como hoje – conta a aposentada, que mora em uma das raras casas da Avenida jornalista Rubens de Arruda Ramos.
As famílias bem sucedidas financeiramente passaram a morar ali, o que já dava ao balneário um caráter mais chique e distante da realidade rural dos moradores do interior da Ilha. Colarcina explica que nasceu e cresceu nas redondezas da José Boiteux, mas mudou-se para o endereço atual quando casou. O sogro tinha um terreno grande e o jovem casal foi presenteado.
– Lembro dos tempos em que o mar batia aqui, onde hoje é a calçada. Eu botava os pés dentro d’água.
Cenário diferente de hoje, que Colarcina temer atravessar a avenida.
– Bonito é, mas perigoso também. Às vezes, um carro para e deixa a gente passar. Mas se vem outro motorista que não respeita a nossa vez?
(DC, 05/08/2011)
Hábitos antigos ameaçados
A via é rápida. A rua é a Osvaldo Rodrigues Cabral, começo da Avenida Beira-Mar Norte. A casa passa despercebida pela maioria. Já as mudanças são perceptíveis aos moradores.
– Quando começaram as obras eu era menino e brincava de esconde-esconde nos tubos de cimento – recorda André Luiz Fernandes.
O vigilante de 36 anos é um dos filhos de Orlando Joaquim Farias, já falecido, e mora na casa da frente. Nos fundos vive Amélia, a mãe, que de acordo com o filho, cogita deixar o lugar para maior tranquilidade.
– A gente viu tudo isso mudar: o hotel no lugar das casas, os prédios em construção, as vias de mão única. Desapareceram o cais, o barco Flomar, as árvores. Ficou um pé de aroeira na curva, mas que ninguém vê.
Herdeiro do gosto por pescarias, Fernandes conta que passos à frente da árvore, engolidos pelo asfalto, existem uma escada de madeira e um barco afundado. O espaço atrai diversas espécies de peixes.
– Quem nasceu e cresceu aqui conhece uma região que as pessoas nem imaginam existir – sugere.
Fernandes acha que as obras do asfalto trouxeram melhorias, como a ligação com o Norte da Ilha, mas também problemas para os moradores que tiveram hábitos ameaçados.
– A gente atravessava com tranquilidade de um lado ao outro. Tempos atrás, uma vizinha veio aqui e morreu atropelada.
Para ele, a avenida é retrato do que aconteceu em outros pontos da cidade, que se moderniza sob um alto preço:
– A evolução é sempre maior para os carros e para o trânsito correr rápido. Mas não pensam nas pessoas que vivem na cidade.
(DC, 05/08/2011)
Testemunhas do tempo
Poucas casas e apenas duas pistas para os carros circularem. Não havia água encanada, luz elétrica ou telefone. Assim, conta Sebastião Lucio da Silva Telles, era a Beira-Mar Norte quando, em 1969, ele começou a erguer sua casa, na Avenida Rubens de Arruda Ramos.
Fazia pouco tempo que a própria avenida, na época modesta, tinha sido construída (1963-1968). Rápida transição: de mão dupla para seis pistas, com ampliação entre 1977 a 1984. Sinal de transformação da singela Capital para uma das cidades mais cobiçadas do país.
Na época, o trânsito estava estrangulado em dois pontos: ao Sul, na Rua Silva Jardim, na Prainha; e ao Norte, na Rua Frei Caneca. A cidade precisava crescer, principalmente em direção à Trindade e ao Pantanal, onde estavam dois pontos de muito acesso. Um era a Universidade Federal de SC (UFSC), outro, as Centrais Elétricas do Sul do Brasil (Eletrosul).
Do sobrado da família, os Telles viram as modificações. Quando se mudaram, em 1970, ainda existia o Campo da Liga ou Pasto do Bode, o Estádio Adolfo Konder, do Avaí, o qual em 1983 fez o último jogo dando lugar ao BeiramarShopping. Nas cercanias, era possível pescar tainhas. Hoje, a casa fica entre bares e restaurantes e a poucos metros de hotéis de nível internacional.
Diferenças à parte, Telles procura usufruir da moderna Beira-Mar. Caminhar pela orla é um dos prazeres.
– Sinto-me bem em daqui poder olhar para o mar e para o céu.
Talvez ele pudesse fazer a mesma coisa em outro lugar da cidade, e quem sabe até melhor. Mas para ele morar na Beira-Mar é um privilégio.
(DC, 05/08/2011)
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