Artigo escrito por João Carlos Mosimann, escritor, autor de livros sobre a história e a formação do povo e da cultura em Santa Catarina (DC, 14/08/2010)
Libertário, refinado e irônico, Beto Stodieck, morto há 20 anos, deixou legado de práticas de cotidiano pessoal e profissional como exemplo.
Nem só tartufos e panfletários povoam a história da imprensa catarinense de décadas passadas. Grandes momentos e lendários profissionais também dela fizeram parte. Beto Stodieck teria completado 64 anos no último mês de junho se não tivesse morrido em 6 de agosto de 1990. Para quem não o conheceu, bastaria ressaltar-lhe o talento e a independência, dignos de integrar com destaque a face virtuosa dessa história. Beto preferiu viver mais (intensamente) e envelhecer menos, sem imaginar a falta que faria. Cronista social-democrata, como se autointitulava, foi um dos mais independentes colunistas que passaram pela mídia impressa, o que o fez mudar de redação várias vezes. Alternava-se entre O Estado e o Jornal de Santa Catarina, criou o Jornal do Beto e representou a revista Quem. Colaborou nas revistas Manchete e Fatos e Fotos, a convite de Salim Miguel.
Sua irreverência escondia, na verdade, engajamento ideológico e uma pródiga independência, distante da autocensura que distinguia o período. Numa crônica ácida, dissecava as elites, combatia as oligarquias, intimava os políticos, especialmente os biônicos, quando quase todos os bajulavam.
Com humor, pelejava com a mediocridade e com a hipocrisia, enquanto reverenciava a juventude, da qual era uma espécie de guru.
Na Novembrada de 1979, cidade enfeitada para receber o presidente, faixas, bandinhas, 3 mil quilos de carne. No “Senadinho”, Figueiredo receberia o diploma de senador honorário das mãos de um membro da Academia de Letras. Quando quase todos aplaudiam a visita, Beto profetizava: “Só pode ser inabilidade do ministro Said Farah pretender colocar sob a figueira da Praça XV placa homenageando Floriano Peixoto… É muita falta de comunicação do ‘seo’ ministro das comunicações?” Fotografou pessoalmente os episódios e resumiu, dias depois: “Pessoas caídas, pisoteadas; mulheres nervosas, aos prantos; o Dão no calçadão com a cabeleira arrepiada; Fernando Bastos e Waldomiro Colautti da sacada do palácio, em atitude altamente antipolítica, aplaudindo a ação policial… Que Deus nos proteja!” Ao anunciar a derrubada de mais um casarão no Centro da Capital, alertava para um outro, demolido por um “equívoco” do prefeito Cláudio Ávila, embora tombado pelo Patrimônio. E em 1984, profetizava: “A Beira-Mar Norte está mais pra via sem pressa do que pra via expressa”. Em janeiro de 1990, sob a sonora manchete de “Vende-se uma Ilha” , um alerta entre parênteses: “O prefeito está vendendo Florianópolis!”
Beto não escondia sua condição gay, especialmente nos últimos anos de sua vida. Vanguardista, criou o Studio A/2, uma galeria de artes que congregava os ícones das artes plásticas do Estado. Numa só exposição reuniu Martinho de Haro, Rodrigo de Haro, Franklin Cascaes, Hassis, Ely Heil, Max Moura, Meyer Filho, Nini, Vecchietti e Vera Sabino. No dia 6 de julho de 1990, há 20 anos, tirava férias do jornal para morrer exatamente 30 dias depois. Pouco antes, confessava-se cansado, querendo sumir por uns tempos, “uns bons anos de férias”. Conseguiu! Colaboradoras e fiéis escudeiras, as jornalistas Bea Porto e Fernanda Lago registrariam, com propriedade, toda sua verve no álbum É Tudo Mentira, a história segundo Beto Stodieck (Verde Água, 1999).
Se ressurgisse das cinzas, Beto Stodieck ficaria horrorizado com o que autoridades, vereadores e órgãos municipais de planejamento e urbanismo têm feito com a cidade e com a Ilha. Nos últimos anos, o plano diretor da Capital foi alterado 368 vezes, modificando o zoneamento urbano. Certamente essas figuras que comprometem o futuro da Capital não seriam poupadas pelo olhar crítico do colunista.
A censura prévia morreu, mas espectros evanescentes parecem pairar sobranceiros sobre algumas editoras e editorias, inspirando um clima de autocontrição. Os comentários sobre temas de interesse local são tímidos e velados, sem juízo crítico, sem continuidade. Aos leitores, pouco além de notícias e de amenidades, como se um tropel de alienados fossem. Beto Stodieck, definitivamente, continua fazendo falta.
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