Todos os dias, 5,4 bilhões de litros de esgoto sem tratamento são jogados diretamente na natureza no país, contaminando solo, rios, praias e mananciais, e trazendo impactos diretos à saúde da população. O número, levantado pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, divulgado ontem (24) em São Paulo, é mais um indicador que o saneamento ambiental no país vai muito mal. Esta foi a primeira vez que serviços de coleta de esgoto chegaram à metade da população brasileira. E a cifra ainda foi atingida de raspão: somente 50,9% dos brasileiros têm acesso à rede.
A pesquisa divulgada pelo Trata Brasil, a 5º de uma série iniciada em 2008, foi feita em 79 cidades brasileiras com mais de 300 mil habitantes. Nelas vivem cerca de 70 milhões de pessoas, responsáveis por gerar 8,4 bilhões de litros de esgoto diariamente. Em média, apenas 36% do esgoto gerado por esta população recebe algum tipo de tratamento. Isso porque são grandes cidades. Na periferia, em geral, a situação é ainda pior. Pesquisa divulgada em outubro pela Organização Mundial de Saúde já indicava que, no ranking dos 14 países com piores sistemas de tratamento de esgoto, o Brasil fica com o 7º lugar. São cerca de 18 milhões de brasileiros que não têm sequer banheiro em casa.
Para tentar minimizar o problema – e resolvê-lo no longo prazo –, a Organização das Nações Unidas estipulou uma meta para países em desenvolvimento – faz parte das Metas do Milênio http://www.un.org/millenniumgoals/. Anualmente, estes países, segundo a organização, deveriam diminuir em 2,77% seu déficit em saneamento para que, em 2015, ele fosse a metade do número inicial. Isso significa que, se o déficit de um país era de 80% em 1992, até 2015 ele deveria ser de 40%.
O déficit brasileiro atual é de 49,08%, mas ele já foi bem pior. Em 1992, chegava a 63,98% (veja gráfico). Do ano em que a cidade do Rio de Janeiro foi sede da Conferência da ONU para o Meio Ambiente (Eco 92) até 2008, a queda nesta taxa foi de 1,6%, o que, segundo o Instituto Trata Brasil, significa que seriam necessários 56 anos para que o país alcançasse a meta da ONU. Para se ter uma idéia do quanto esse avanço é lento, a diminuição da pobreza no país ocorre quatro vezes mais rápido do que a implementação de serviços básicos para a os brasileiros.
Veja mais dados nos gráficos abaixo
“[O Brasil hoje] É uma fotografia do século XIX em pleno século XXI. Tem pessoas no país que vivem em condições de saneamento similares às encontradas em 1808, quando D. João XI chegou no Brasil”, diz Raul Pinho, presidente do instituto.
Quando analisado somente o período entre 2007 e 2008, quando o país teve uma melhora substancial na implementação de serviços de tratamento de esgoto devido, majoritariamente, por ações do governo federal e governos locais, a queda foi de 4,18%. “Se seguissemos a queda dos últimos dois anos, em 16 anos alcançaríamos a meta do Milênio da ONU”, diz Marcelo Neri, coordenador do Centro de Políticas Sociais da FGV.
A boa notícia, no entanto, deve ser analisada com cuidado. Isso porque a melhora não reflete uma tendência, dizem os pesquisadores. A implementação de serviços de saneamento básico podem não acompanhar o inchaço das cidades, o que resultaria numa nova reversão do quadro. Política local Segundo os pesquisadores responsáveis pelo estudo, a melhora na oferta de serviços de coleta e tratamento de esgoto não está necessariamente relacionada à classe social ou à riqueza da cidade. Florianópolis (SC), por exemplo, cidade com um dos maiores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil e conhecido destino turístico, tem déficit em saneamento (54,9%) maior do que capitais de estados notadamente mais pobres, como Rio Branco (AC, déficit de 49,82%), João Pessoa (PB, déficit de 53,38%) e Palmas (TO, déficit de 39,78%). A capital de Santa Catarina está em 17º lugar no ranking de déficit em capitais brasileiras e atrás de periferias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraná.
A região metropolitana de Salvador é um bom exemplo de como a melhora nos serviços está diretamente ligada à ação do poder público local. Com a implementação do programa Baia Azul, responsável pela execução de obras e ações na área de coleta e tratamento de esgoto para os municípios da Grande Salvador, a taxa de acesso passou de 18,84% para 68,42% em apenas nove anos. A capital baiana é hoje, segundo o ranking do Trata Brasil, a segunda cidade com menor índice de déficit em saneamento (7,49%). “Não adianta a cidade ou o estado terem dinheiro se os recursos não são investidos na área”, diz Neri.
Assunto desagradável
A diferença na atenção dada por políticos e até pela população aos assuntos relativos a saneamento tem tudo a ver com o modo como o tema é encarado no país. Discussões sobre esgoto, fezes e doenças transmitidas pela falta de coleta e tratamento são geralmente evitadas. Seja porque são assuntos desagradáveis ou porque, no âmbito da política, não interessam aos tomadores de decisão. Os maiores impactados pela falta de saneamento no país são as crianças: entre 1 e 6 anos, crianças sem acesso à rede têm 22% mais chance de morrerem do que aquelas com acesso. Mulheres grávidas sem acesso à rede de esgoto também tem 22% a mais de chance de perderem seus filhos, segundo a 4ª pesquisa divulgada pelo Trata Brasil, no ano passado. “Saneamento não é um bom mote eleitoral”, diz o coordenador da FGV.
Segundo Marcelo Neri e Raul Pinho, a criação do Ministério das Cidades em 2003 e a promulgação da lei do saneamento em 2007, que transferiu para municípios a responsabilidade pelo serviço, foram decisivos para a melhora apresentada nos últimos anos. O PAC também teve sua parcela de contribuição, dizem os pesquisadores. Mas muita coisa ainda precisa ser feita. Para que todos os brasileiros deixem de jogar seus esgotos diretamente no meio ambiente seriam necessários investimentos na ordem de 270 bilhões. O PAC previa a injeção de 40 bilhões no setor entre 2007 e 2010, mas, até agora, apenas 25 bilhões foram usados em contratações e apenas 15% deste valor foram executados.
(O Eco, 25/11/2009)
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