Para urbanista, descentralização beneficiaria metrópoles
A maior metrópole brasileira abandonou a discussão sobre transporte para se limitar ao trânsito. É preciso construir cidades, não ruas. O alargamento da Marginal do Rio Tietê, em São Paulo, é um paliativo que não durará dois anos. E uma boa parceria público-privada teria evitado a guerra dos ônibus fretados. Essas são algumas das opiniões do especialista em planejamento urbano Valter Caldana, coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Esse paulista de 47 anos, nascido em Ribeirão Preto, adotou São Paulo há quatro décadas e viu-a transformar-se. Para pior. “Desde 1972, a cidade trocou o desenho urbano pelo desenho viário”, alerta o professor com doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Na entrevista a seguir, Caldana diz que a solução – além da necessidade urgente de metrô e corredores de ônibus – passa pela descentralização politico-administrativa e econômica da cidade.
Essa semana o prefeito Gilberto Kassab vetou a circulação de ônibus fretados por uma área de 70 km² ao redor da Sé, no centro de São Paulo. Na sexta-feira, uma juíza paulista autorizou a volta dos veículos, mas o TJ manteve a restrição. Por que essa medida causou tanta polêmica?
A Prefeitura tem uma enorme dificuldade de fiscalização, dado o tamanho da cidade. E, na medida em que não consegue fazê-la, acaba sendo mais cômodo proibir tudo. O que houve foi um flagrante equívoco sobre o que se poderia fazer com uma parceria público-privada nos transportes da cidade. A ideia era tirar das ruas 1.300 fretados numa frota de 6 milhões de veículos. Faz tanta diferença? Claro que muitos desses ônibus param fora de lugar, passam por vias onde não cabem e atravancam o trânsito. Algo tinha de ser feito. Mas por que não chamar os responsáveis pelas empresas e discutir um redesenho do percurso antes de optar pela proibição generalizada? Faltou diálogo.
Há muito tempo não se viam tantos protestos contra uma medida na área dos transportes como ocorreu por parte dos usuários após a proibição dos fretados. Por quê?
Na verdade, há uma enorme mobilização por transporte por parte das camadas populares. Vira e mexe ocorrem protestos, quebra-quebras, ônibus incendiados, sobretudo nas origens das linhas, nas zonas periféricas – o que gera repercussão relativamente pequena entre as classes médias urbanas. Agora, elas foram afetadas.
Por que a questão sensibiliza menos a classe média?
A classe média formadora de opinião em geral possui carro e está mais preocupada com o trânsito do que com o transporte. Há uma sutil diferença. Quando a prefeita Marta Suplicy construiu corredores de ônibus em avenidas das regiões nobres, a crítica que se fez foi que eles “prejudicavam o trânsito”. Corredores pioram o trânsito, mas melhoram o transporte.
O que significou esse enfoque da mobilidade urbana pelo viés do trânsito, e não do transporte?
São Paulo nos últimos 37 anos trocou o desenho urbano pelo desenho viário. Construiu ruas sem construir cidade. Desde 1972 temos um modelo de intervenção que prioriza o trânsito e o transporte individual. Isso está relacionado com o modelo de desenvolvimento nacional, baseado no binômio construção civil/indústria automobilística. E se transformou no elemento gerador de toda a expansão urbana em São Paulo.
O que poderia ter sido feito?
Em todas as grandes cidades do mundo, faz-se antes o desenho do sistema de transporte e depois cuida-se do trânsito decorrente. Por que Curitiba tornou-se na década de 90 uma cidade aprazível, das mais interessantes do País? Porque houve uma reformulação do sistema de transporte urbano na capital do Paraná na década de 70. Ele foi inteiramente redesenhado na primeira gestão de Jaime Lerner, que ainda era prefeito nomeado. Corredores de ônibus confortáveis foram feitos, diminuíram a necessidade de automóvel e acabaram por dar mais fluidez até para quem opta pelo carro.
Em 1999 o senhor concedeu uma entrevista apontando problemas na expansão das pistas da Marginal do Rio Tietê, que está sendo posta em prática hoje. É outro projeto que privilegia o trânsito em lugar do transporte?
Sim. Mais uma vez o poder público faz a opção por uma solução viária, constrói ruas em vez de construir cidade. E o maior problema é que está se fazendo uma obra enorme que terá resultados por um período muito curto. Você vai alargar a marginal e aumentar o fluxo, vão entrar novos carros e, em menos de dois anos, teremos o fluxo lento novamente. É um paliativo.
O que teria sido melhor?
Fui um dos autores da proposta de criação de uma agência para o desenvolvimento urbanístico das marginais – com paisagismo e ocupação daquele espaço pelos cidadãos. O projeto Pomar foi uma das ideias que surgiu dessas reuniões. Só que a opção, agora, foi privilegiar o deslocamento de veículos.
Ao primeiro sinal da crise financeira, os governos federal e estadual correram em socorro da indústria automobilística nacional. Imaginar que as pessoas deixarão de comprar carros não é utopia?
De fato, seria tolo esperar por isso. No longo prazo, teremos que enfrentar o problema do modelo econômico: o Brasil não pode continuar tão dependente da indústria automobilística. Mas isso não será revisto em um ano. Agora podemos diminuir o número de viagens e o tempo que esses automóveis ficam na rua, por exemplo.
De que maneira?
Com um programa efetivo de descentralização da cidade. É preciso promover o desenvolvimento econômico ao longo do tecido urbano de forma mais homogênea. São Paulo ainda é, por incrível que pareça, uma metrópole de altíssima concentração de atividades. Os mapas deixam claro: você tem o emprego concentrado no “entre rios” e no eixo sudoeste e há alta concentração de moradia e habitação em volta disso. São Paulo é uma cidade polinucleada por vocação, nasce de uma série de grupamentos urbanos que se juntaram – o nome técnico é conurbação -, mas tem um modelo político-administrativo centralizado. Isso favorece a concentração econômica e faz com que a Prefeitura não consiga ter capilaridade para resolver os problemas do dia a dia da cidade.
Essa semana o governo federal anunciou um projeto para regularizar a profissão de mototaxista. O que acha da ideia?
De forma geral, o governo tratou apenas de regulamentar o que já é uma prática comum em determinadas regiões da cidade, tentando dar um pouco mais de segurança ao usuário. Em minha opinião, diferentemente do motoboy – figura que já se tornou indispensável -, o mototáxi não deve prosperar no centro. Andar de moto ainda é considerado perigoso.
Por que o motoboy tornou-se indispensável em São Paulo?
Tudo isso se deve ao desenho viário em vez de urbano que a cidade adotou. Veja que as mesmas pessoas que se queixam da presença dos motoboys nas ruas não abrem mão de seus serviços: no trabalho, na entrega de documentos, na hora de pedir comida em casa. São Paulo adotou um modelo rodoviarista, abriu milhares de ruas e avenidas sem o menor cuidado com seus entornos. Bairros como Vila Leopoldina têm recebido enormes investimentos, erguem-se prédios atrás de prédios sem nenhum metro de área pública entre eles. Quando falo de desenho público, não se trata de algo conceitual, imaterial, mas da possibilidade de se dormir meia hora a mais, de chegar mais cedo em casa, ter tempo e lugar para passear com o filho ou sair com a namorada.
Como deveria ser o desenho das ruas e avenidas?
Pegue a Avenida 23 de Maio, do Anhangabaú até o aeroporto de Congonhas. É um exemplo de via bem implantada na cidade. Bonita, bem servida de viadutos, tem o leito rebaixado, com os bairros mais altos ao redor… Mesmo sob trânsito carregado você se sente mais confortável nela do que na Radial Leste ou na Avenida Roberto Marinho. Essas últimas não passam de asfalto margeado por pequenas calçadas. Não têm mobiliário urbano, vegetação ou serviços. O Elevado Costa e Silva, o Parque Dom Pedro e a Baixada do Glicério são símbolos desse pensamento viário e não urbanístico – que privilegia o deslocamento e não a apropriação da cidade pelas pessoas.
O metrô de São Paulo tem a mesma idade do da cidade do México, duas grandes metrópoles de países com PIBs semelhantes. Mas os mexicanos contam com 200 km de linhas, enquanto os paulistanos não têm mais que 60 km. O metrô seria a solução definitiva?
O metrô não é a solução definitiva, mas a mais durável. Em qualquer comparação em termos de retorno por real investido entre o metrô e essa ampliação das marginais ele leva vantagem. Com mecanismos de eficiência e sincronia de trens, o metrô pode ampliar sua capacidade várias vezes em um mesmo traçado. E o que temos em São Paulo é uma exceção à regra de tudo o que falei: ele manteve a tradição mais saudável do urbanismo brasileiro de construir o equipamento com cidade no seu entorno. Particularmente na Linha Norte-Sul, que recebeu mais investimentos que a Leste-Oeste, por onde ele passou houve processos de reurbanização.
E enquanto o metrô não vem? Fazemos corredores de ônibus?
Há corredores e corredores de ônibus. O que aconteceu nos últimos que foram feitos, como o da Avenida Rebouças? De novo, a tendência foi tratá-los como um leito de rua, como faixa exclusiva. Corredor de ônibus só funciona se tiver controle de fluxo, monitoramento de frequência, segurança e pontualidade, a exemplo do que ocorre no metrô.
Alguns especialistas em trânsito afirmam que não basta melhorar o transporte público: é preciso também restringir o uso do automóvel. O senhor concorda?
Não. Você cria um modelo econômico que oferece ao cidadão a possibilidade de comprar um carro em 80 vezes de R$ 399 e depois vai dizer a ele que não pode tirar o carro da garagem? Acho isso uma afronta à cidadania. Assim como a ideia de pedagiar as marginais. Precisamos construir uma cidade que dependa menos do carro. E não incomodar ainda mais o cidadão que já é suficientemente incomodado.
E qual seria a primeira obra para a solução definitiva do problema do transporte nas grandes cidades?
É uma obra que custa muito em termos políticos e nada em termos de dinheiro: fazer a efetiva descentralização administrativa da cidade. Quando trocaram as administrações regionais pelas subprefeituras, houve esperança de que finalmente estávamos no bom caminho. Só que a coisa andou um quarteirão e parou. As subprefeituras têm hoje mais atribuições e alguma liberdade de atuação, mas só serão efetivas no momento em que houver descentralização orçamentária e política. Ou seja, quando as subprefeituras forem de fato o que nome diz, com autonomia e conselhos de representantes dos bairros para a definição de prioridades. Tudo isso já está previsto em lei, no Estatuto da Cidade, na Lei Orgânica e no Plano Diretor, só que nunca foi implementado. As grandes avenidas, o metrô, o sistema de saúde e as redes em geral permaneceriam centralizadas – mas a gestão na ponta seria local. Assim, as intervenções físicas que geram o redesenho da cidade passariam a ser de menor porte e muito mais baratas. É um processo integrado, e que não pode ser pensado só com asfalto.
(O Estado de S.Paulo, 03/08/2009)
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