Nos tempos em que o povo não era escutado, dizia-se que sua voz era a voz de Deus, mas nem por isso se evitou muito cacete no lombo dos que ousavam protestar contra os desmandos das elites e dos governantes. Talvez o axioma fosse verdade, mas para tal haveria de se concluir que Deus era censurado com o apoio de certas instituições cristãs como a TFP, que dizia marchar em Sua companhia pela tradição, família e propriedade.
Mas as coisas mudaram e tá difícil, hoje em dia, relegar o vozerio popular ao zumbido das preces ou escondê-la em calabouços, pois censurar a voz do povo, ainda mais com o advento da internet, se faz impossível.
O único instrumento que sobrou às elites é a contra-informação. A manipulação da informação do fato real, a inversão da verdadeira vontade popular. Só para exemplificar como a coisa funciona, reproduzo a nota de coluna assinada por certa senhora de nome Maria Aparecida Nery, num pequeno jornal, provavelmente semanário, de profusa policromia perceptivelmente patrocinada por interesses e especuladores imobiliários. Dá a entender a autora que os moradores da comunidade do Sambaqui prefiram descartar seus “dejetos in natura no solo e nos cursos d’água… de onde – conclui – naturalmente, tudo vai parar no mar”.
Considerando que de 24 anunciantes do pequeno jornal da dona Maria Aparecida: “Ilha Capital”, 14 promovem serviços relativos ao segmento imobiliário e que, além do anúncio de ½ página do governo do estado, todos os demais do mesmo tamanho ou de página inteira são de empreendimentos do ramo, esse house organ da ocupação livre e indiscriminada da Ilha de Santa Catarina pela especulação imobiliária, suscita muitas sugestões sobre os reais interesses da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento – CASAN – em transformar o belo manguezal da desembocadura do Rio Ratones em temporária cloaca.
Mas não incorramos em cogitações sem qualquer base de mínima informação, como faz a dona Maria Aparecida que sequer se preocupou em se inteirar sobre os laudos de pesquisas da UFSC que aferiram correnteza Zero a sul e norte do estreito canal marítimo que separa a Ilha do continente, onde diversas famílias sobrevivem da maricultura. Não sabe a dona Maria que isso significa que o que for lançado no rio e do rio ao mar, por aqui mesmo ficará.
Pedantismo blasé
Também não sabe que a própria CASAN reconhece que seu projeto de Estação de Tratamento de Esgoto, embora assegure filtragem de até 98% dos coliformes fecais, é ineficiente quanto aos nutrientes e metais pesados ingeridos por ostras e mariscos, moluscos bivalves que do mar vão à mesa, e da mesa à morte de quem os consome.
Mas esse pedantismo blasé ao que não é do interesse da especulação imobiliária é comportamento admirado por Dona Maria Aparecida, como se nota nos títulos de outras de suas matérias no mesmo exemplar daquele house organ: “STF detona ecochatos”, “Anulado embargo do IBAMA contra Obra” e “Sem ETE na Barra do Sambaqui” .
E assim desinformada e desinformante por falta ou excesso de interesses, ignora ou omite que a palavra de ordem reproduzida em camisetas e todos os materiais de divulgação do movimento dos moradores das comunidades do Cacupé, Santo Antonio de Lisboa, Sambaqui e Barra do Sambaqui é: Tratamento de Esgoto Sim! Esgoto no Mangue Não!
Os nomes destas pequenas, anônimas e aprazíveis comunidades, de repente se projetaram pela internet reproduzindo a voz de seus moradores ao se levantarem contra a criminosa decisão do Estado de Santa Catarina em jogar o esgoto da comunidade em um rio da localidade, só para aproveitar sobejos da verba destinada pelo governo federal, através do PAC.
Dividida em dois núcleos: Barra do Sambaqui e Sambaqui, a população da bucólica e confinada comunidade tem largo histórico de combatividade desde os anos 80, quando se cogitava a negociação com a Marinha do bosque da Ponta do Sambaqui para instalação de hotel com trapiche de atracação de lanchas e outros claros desrespeitos às tradições de sobrevivência de sua gente pesqueira.
Ainda naqueles anos de ditadura os jovens filhos dos pescadores se uniram contra os especuladores e exigiram da Marinha Brasileira a manutenção do respeito àquele rincão de usufruto popular onde se realizam as festas da comunidade, os pic-nic de finais de semana, passeios e prazerosos ou românticos namoros.
Formou-se, assim, a primeira Associação de Moradores do Município de Florianópolis, notabilizando-se o bairro como núcleo de reação aos desmandos e inconseqüências das chamadas autoridades públicas.
Ostras e mexilhões
A partir de então, percebendo-se visada pela paradisíaca beleza de sua paisagem, arquitetura e urbanismo, a comunidade vêm criando diversos eventos para manter a coesão e mobilização: gincanas, danças e brincadeiras de rua, blocos carnavalescos, exposições de seus artistas plásticos, festas religiosas e populares. Mobilizações que resultaram em arborização de praças, instalação de equipamentos de lazer e esportes infanto-juvenis, sinalização para visitantes, cuidados e vigilância entre outras ações dos próprios moradores que têm no pequeno bairro, uma extensão de suas casas.
Evidentemente, como em toda concentração humana, há as discordâncias e eventuais dissidências, mas qualquer ameaça à preservação da natureza ou às tradicionais atividades profissionais ou culturais da localidade, imediatamente reúne a todos em prol do bem comum. Foi o que se deu, por exemplo, quando um empresário de outro estado instalou uma casa sobre balsa para moradia e exploração da ostreicultura.
Desde os anos 90, as tranqüilas águas da baía têm sido utilizadas para criação de ostras e mexilhões como alternativa da atividade pesqueira, mas pôr alguém a morar sobre o mar é outra história e se as autoridades se fizeram despercebidas, os moradores de Santo Antônio e Sambaqui se manifestaram exigindo providências que retornaram os investimentos do empresário à sua terra natal ou para qualquer outro lugar que não aqui.
Mais recente, uma inusitada onda de violência alcançou o bairro e o comando da Polícia Militar decidiu pela impossibilidade de reinstalação de um posto policial que havia na entrada de Santo Antonio de Lisboa e fora retirado pelo governo anterior. Há dois anos e antes que as manifestações da comunidade fechassem o tráfego da principal via de acesso ao norte da Ilha, o posto permanece funcionando diariamente.
Ao final do primeiro semestre de 2008, através das verbas disponibilizadas pelo Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC do governo federal, a CASAN, como administradora terceirizou a obra de instalação do tronco do sistema que coletará o esgoto do Cacupé, Santo Antônio e Sambaqui. Perceptivelmente desqualificada para o trabalho e tendo provocando diversos transtornos à comunidade, a empresa teve seu contrato de terceirização anulado por força das manifestações dos moradores através de diversas reuniões, inclusive com a presença do Ministério Público.
Sob o mesmo financiamento federal, a CASAN já instalara duvidosas e problemáticas estações de tratamento como a do bairro da Tapera e tantas outras, pretendendo reproduzir uma similar junto ao manguezal e o Rio Ratones, no núcleo habitacional da Barra do Sambaqui para o qual sequer se prevê a coleta. De esgoto, aqueles moradores ficariam apenas com o mau cheiro que, em poucos anos inviabilizaria inclusive a atividade de todos os maricultores da Baía Norte de Florianópolis, além da biologia de uma estação ecológica administrada pelo IBAMA.
Piadinhas racistas
Com a arrogância própria dos especuladores do capital estatal ou, melhor dizendo, público, o presidente da CASAN respondeu as manifestações da comunidade afirmando que a Estação de Tratamento de Esgoto seria instalada “na marra”.
A mobilização dos moradores da Barra, do Sambaqui, de Santo Antônio e Cacupé estimulou outras comunidades, inclusive a da Tapera que ora se mobiliza pela suspensão do funcionamento da ETE ali instalada, altamente venosa à biologia aqüífera, inclusive as cultivadas pelos tantos produtores de ostras e mariscos de Santa Catarina.
Ainda que estatal, os rendimentos da CASAN sempre foram muito atraentes e garantiram bons empreendimentos hoteleiros aos familiares de seus ex-diretores. Associada a especulação imobiliária, a CASAN sempre encontra respaldo e apoio do setor e da mídia a ele dependente, como no pretenso informativo da dona Maria Aparecida que reproduz pérolas do que há de pior na imprensa nacional como o famigerado Reinaldo Azevedo da Veja e o, não menos, ex-assessor de Collor de Melo: Cláudio Humberto.
Também abrilhantam as mal traçadas linhas de sofrível redação dos redatores e diretores, piadinhas de forte cunho racista contra os palestinos, o governo e o partido do Presidente Lula, e máximas como a do conservador norte-americano Ben Shapiro, que bem reproduzem as perspectivas da publicação: “Chega de bons sentimentos. Não há nada de errado em tratarmos nossos inimigos como inimigos”.
Fascista, após cursar a high school de YULA Shapiro entrou em conflito com seus colegas e professores da Universidade da Califórnia, por considerá-los excessivamente liberais. Já o artigo de Reinaldo de Azevedo reproduzido no Ilha Capital é um arrazoado contra o IELA da Universidade Federal de Santa Catarina, por promover as Jornadas Bolivarianas que, a despeito do despeito do Reginaldo, tornará a ocorrer no próximo mês de abril.
Mas é isso: os reginaldos ladram e os bolivarianos passam, assim como a verdade da Voz do Povo fala mais alto do que a dos especuladores que ora se dissolvem nos desinteressantes houses organs de escusos e mal disfarçados interesses das elites.
Até aí tudo bem, faz parte da democracia e nossa função sempre foi essa mesma de desmontar planos como o desta versão do PAO – Plano de Apoio à Oposição. Só o que preocupa é a origem da verba para o financiamento do anúncio policrômico de meia página da referida edição. Terá vindo do PAC ou dos milhões destinados aos desabrigados e desassistidos de Blumenau?
(Raul Longo, Sambaqui na rede, 16/03/2009)
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