Num passado não tão distante, as ONGs, ou organizações não-governamentais, eram vistas como defensoras de causas nobres, como o meio ambiente, a educação ou o combate a doenças. Nos últimos tempos, porém, o brasileiro parece ter se acostumado a ouvir falar nas ONGs como foco de fraudes, falcatruas com dinheiro público ou ainda como centros de propagação de ideologias e interesses privados. Escondidos sob o manto das causas nobres defendidas por elas estariam sórdidos esquemas de corrupção. O Congresso Nacional criou até uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as denúncias contra o uso das ONGs no desvio de dinheiro público. Qual das duas imagens das ONGs representa a realidade? Sua proliferação e sua crescente influência são notícias boas ou ruins para a sociedade? Para responder a essas perguntas, este especial de ÉPOCA Debate faz um mergulho detalhado no universo das ONGs.
A primeira conclusão é que as ONGs tendem a assumir um papel cada vez mais relevante no mundo contemporâneo. De acordo com o pesquisador Lester Salamon, da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, a explosão do Terceiro Setor – nome que os estudiosos usam para se referir às ONGs (porque atuam entre o Estado, o primeiro setor, e as empresas, o segundo) – pode representar para nosso tempo o que o crescimento dos Estados nacionais representaram no fim do século XIX e início do XX. “Este é um momento especial da História”, diz Salamon. “Estamos no meio de uma revolução associativa global”. O crescimento das organizações sem fins lucrativos, afirma Salamon, ganhou força a partir dos anos 90. As principais causas foram a ascensão das políticas liberais, praticadas pelos governos de Ronald Reagan (EUA) e de Margaret Thatcher (Inglaterra), e a crise do socialismo, com o fim da União Soviética. A descrença crescente no poder do Estado para promover o desenvolvimento econômico e a crise nos partidos de esquerda geraram um espaço vago no espectro ideológico. Por defender causas próximas dos interesses do cidadão comum e por apresentar-se a uma distância profilática de governos e empresas, as ONGs conseguiram ocupar esse espaço.
De lá para cá, só fizeram crescer. Um estudo de Salamon revela que elas já movimentam o equivalente a US$ 1,9 trilhão por ano (R$ 3,1 trilhões). É mais que o PIB do Brasil, de US$ 1,3 trilhão, e o equivalente a 5,1% do PIB combinado dos 40 países incluídos na pesquisa. Se fosse um país independente, o Terceiro Setor teria sido a oitava maior economia do planeta no ano passado. O Brasil segue essa tendência global. O Terceiro Setor já representa 5% do PIB brasileiro. Na semana passada, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou um crescimento significativo no número de ONGs criadas no país nos últimos anos. Entre 2002 e 2005, elas aumentaram de 22,6% – de 287 mil para 338,2 mil. Estima-se que hoje já sejam 400 mil. Com um contingente avaliado hoje em 1,8 milhão de funcionários com carteira assinada – mais que o triplo dos funcionários públicos federais –, as ONGs movimentam cerca de R$ 35 bilhões por mês só com o pagamento de salários. Os salários na área social já estão próximos dos pagos na iniciativa privada e no setor público. Nos Estados Unidos, um trabalhador do Terceiro Setor recebe em média US$ 627 por semana em comparação a US$ 669 na iniciativa privada. No Brasil, os trabalhadores do Terceiro Setor ganham, em média, 3,8 salários mínimos por mês (ou R$ 1.577), ou 3,2% a mais que a média nacional. “A crença de que os trabalhadores do Terceiro Setor ganham menos que seus colegas do setor privado é hoje, na melhor hipótese, uma meia-verdade”, diz Salamon.
A segunda conclusão deste especial ÉPOCA Debate, retratada na próxima reportagem, é que a quantidade de dinheiro disponível no Terceiro Setor atrai não apenas gente bem-intencionada. Os esquemas de corrupção e desvio de dinheiro público que surgiram ao redor das ONGs devem ser combatidos e investigados. A legislação que as regula também deve ser aperfeiçoada para evitar as brechas que permitem esses desvios. Mas, surpreendentemente, a maior parte do dinheiro das ONGs não vem do governo. De acordo a pesquisa da Johns Hopkins, apenas 14% dos recursos das ONGs brasileiras se originam de convênios e subvenções governamentais. A maior fatia – 69% – vem da venda de produtos e serviços. E 17% se originam de doações do setor privado (leia o quadro).
São tantas as ONGs no Brasil que a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) decidiu criar um mecanismo semelhante ao de ações para ajudá-las a captar recursos. E para ajudar os investidores a escolher as ONGs em que querem aplicar seu dinheiro. Batizada como Bolsa de Valores Sociais e Ambientais (BVS&A), a iniciativa já permitiu a doação de R$ 9,6 milhões a 73 projetos em todo o Brasil desde sua criação, em 2003. O pioneirismo já rendeu à Bovespa a chancela da ONU e está inspirando iniciativas semelhantes em outros países. Na África do Sul, surgiu uma iniciativa semelhante. A Alemanha pretende seguir o mesmo caminho. “É um projeto que está transferindo a experiência de captação das empresas para a área social”, diz Raimundo Magliano Filho, presidente da Bovespa.
Se fosse um país independente, o Terceiro Setor
seria a oitava maior economia do planeta
O interesse da Bovespa pelas ONGs é uma prova de que poucas, pouquíssimas áreas exibem hoje o vigor e o dinamismo observados no Terceiro Setor. Eis, portanto, a terceira e principal conclusão deste especial ÉPOCA Debate: é pelo que fazem de bom – e não de mau – que o poder e a influência das ONGS não param de aumentar“. Se as organizações sociais definirem com precisão suas missões e seguirem uma visão do mundo dos negócios para avaliar os resultados, a eficiência vai crescer a cada ano”, afirma o executivo John Fuller, co-fundador e atual presidente do Monitor Group, consultoria internacional com sede em Boston, nos Estados Unidos. O Monitor é parceiro do New Profit, um fundo americano que investe recursos do público em empreendimentos sociais. Usa a experiência que adquiriu em seu trabalho com grandes corporações para ajudar os empreendedores sociais a crescer e prosperar.
Segundo Fuller, o maior problema das ONGs não é falta de dinheiro, mas de gestão. É esse desafio que tem atraído tantos profissionais qualificados do mercado para o universo das ONGs. Embora seja pouco conhecido dos brasileiros como um pólo de inovação, o setor social se transformou numa fábrica de novas idéias voltadas para a solução de problemas. E começou a empregar gente que parece realmente interessada em fazer sua parte para mudar o cenário social do país. Conhecidos como empreendedores sociais, eles estão mudando a face da filantropia no Brasil e no mundo (leia a reportagem).
Capitalistas convictos, como o fundador da Microsoft, Bill Gates, hoje convertido à filantropia, estão se transformando em agentes financiadores desses empreendedores sociais. A Fundação Bill & Melinda Gates, a maior do mundo, tem US$ 38,7 bilhões para financiar projetos sociais em todo o planeta. “O capitalismo melhorou a vida de milhões de pessoas, mas deixou bilhões de pessoas para fora do sistema”, escreve Gates num artigo publicado na revista Time, intitulado Como Consertar o Capitalismo. “Os governos e as organizações sem fins lucrativos têm um papel insubstituível para ajudá-las”.
(Época, 11/08/2008)
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