Artigo de Lauro Junkes — Presidente da Academia Catarinense de Letras (DC, 14/06/08)
Estamos vivendo um ano centenário digno de inegáveis comemorações: no dia 29 de setembro de 1908 falecia, no Rio de Janeiro, Machado de Assis, escritor que enobrece o país; no dia 16 de outubro de 1908 nascia, em São José, nosso bruxólogo número um, Franklin Cascaes (falecido a 15 de março de 1983).
O “Bruxo de Cosme Velho” recebe, em todo o Brasil, as comemorações a que faz jus. A Santa Catarina, especialmente a Florianópolis, cabe dignificar o “Bruxo das Bruxas”. A Fundação Franklin Cascaes, da prefeitura de Florianópolis, prestará, na próxima quinta, justíssima homenagem ao professor, pesquisador, escritor, desenhista e escultor Franklin Cascaes, através do lançamento do livro 13 Cascaes, sob a coordenação de Dennis Radünz e a organização de Flávio José Cardozo e Salim Miguel.
São 13 (na melhor adequação buxólico-cabalística) os contistas que integram e constroem esse autêntico relicário da mitologia ilhoa, dado à vida pelo bruxólogo Franklin Cascaes, ou então recompõem, em corpo amplo, o grande mito-mitólogo Franklin Cascaes, de incomensuráveis méritos para a tradição açoriana. De leitura tão agradável quanto enriquecedora, os 13 contos, ilustrados por Tércio da Gama, desdobram facetas múltiplas do gênio bruxo e a herança que nos legou, entrelaçando com habilidade ficção e realidade.
Colocando em foco um autêntico congresso bruxólico, com o objetivo de se tomarem resoluções eficazes para deter o crescente descrédito com que as bruxas vêm sendo tratadas, tudo “culpa do tal de progresso”, bem como projetando, entrementes, as malignidades por elas forjadas, a bruxa Pestina relata cena ocorrida em São José, onde três fadas (“que nojo!”) comentavam a concepção e o nascimento futuro de um menino que registrará todas as estórias, lendas, costumes, bruxas e bruxedos da região… É O Abençoado, de Júlio de Queiroz, que traz à luz mestre Franklin.
Dois bandolins, de Flávio José Cardozo, em tom poético, sensual e transfigurador, restitui-nos um dia de ausências, saudades, revivências de um Cascaes de certa forma já desprendido do solo rude e entremostrando dimensões sublimadas, nos seus amores com Beth, amores que, se foram estéreis em relação a filhos, multiplicaram-se na afeição mútua, a ponto de, falecida ela, somente salvá-lo da solidão o “bendito Museu da Universidade”, nesses “quatro anos sem Beth e sempre com ela”, cena plenificada com a bruxa bandolinista sublimada e fundida na “soberana” Beth, “bandolim silencioso na mão direita”.
Já Amílcar Neves, em Uma noite de profunda insônia solitária, reconstrói um encontro com o próprio Franque, colocando em xeque variadas questões: Bruxa existe ou não? Escritor terá “a intenção de falar sério”? O que é a verdade? A ficção engloba personagens reais, ou a realidade se compõe de personagens ficcionais? Criador e criatura podem conviver?
Novamente fusionando ficção e realidade, em O folheto, de Silveira de Souza, o professor de desenho Franklin se personifica em bom retrato, inclusive num diálogo totalmente verossímil, em encontro direto com o narrador. Quanto à forma e atuação das bruxas, quem não acredita, veja ao que aconteceu!
Franklin Cascaes participa, como personagem, de vários relatos. Mistério no Miramar, de Salim Miguel, aparenta ingredientes policiais, concentrado num corpo misterioso recolhido nas águas junto ao Miramar. Entretanto, intuição de fina perspicácia logrou montar instigante relato, no qual sutil refinamento aponta para prodigiosa riqueza intertextual dos nomes das personagens, a partir dos traços essenciais de Franklin Cascaes, da figura de JCS (João da Cruz e Sousa) e do seu círculo de amigos: Virgílio Várzea, Araújo Figueredo, Santos Lostada, Oscar Rosa, Luís Delfino (alguns desdobrados), seus pais Carolina e Guilherme e suas amadas Pedra e Gavita, além da angelical Julieta (dos Santos), aos quais se somam os admiradores e estudiosos do Cisne Negro: Nestor (Vítor), Andrade Muricy, Tasso (da Silveira), Alphonsus (de Guimaraens), Abelardo (Montenegro), Raymundo (Magalhães), Roger (Bastide).
Jair Francisco Hamms, por sua vez, em cena de bastante intimismo poético, concentrada na morte do menino Orlandinho, filho da negra dona Zenilda, Branco assim da cor da lua, fazendo várias “personagens”, além de Cascaes (de ares ponderados e humanitários), transitarem do real para a ficção: Tércio da Gama, Adolfo Boos, o próprio autor-narrador – todos “rapazes pequenos”, moradores a Rua Bocaiúva, há décadas passadas.
Outras narrativas mantêm toda a aura de Franklin Cascaes, sempre presença vigorosa, mesmo sem figuração corporal. Eglê Malheiros, em História praiana, retrata Docelina e seus 12 filhos, reduzidos a cinco, ou a quatro e meio, consolando-se com seus “anjinhos, almas puras”, sem deixar, porém, de refletir “por que só filho de pobre vira anjinho?” (Eglê, sempre de pé no chão, não deixa de lançar seus questionamentos: por que o pobre é sempre sofrido? Por que a mulher é explorada e submissa?). Enquanto as “modernices” a aliciam, seu marido Armando lança a contrapartida: nessas “modernices” estão as “bruxas”, “da pior espécie”, como diria, se presente estivesse, Aquele professor da Escola de Artífices! Certamente ficaria estarrecido. Semelhantemente, Ao entardecer, de Maria de Lourdes Krieger, condensa uma cena ou instantâneo na vida praieira: a chegada dos pescadores com seu escasso produto, que é vendido para a divisão dos lucros, enquanto o “olheiro” Onofre lembra o amigo (não será preciso dar seu nome!) que tanto advertira sobre mudanças nefastas do progresso sobre essa ilha “embruxada pelo capitalismo e pelos gananciosos”.
Protagoniza O “Minha Querida”, de Fábio Brüggemann, um anônimo “rapaz” (está “sempre cheio de motivos”; “não e concentrava muito em um assunto”, seguido pela sombra da “rapariga” ), que sempre embarcava na “Minha Querida” e se esfalfava na azáfama de limpezas no restaurante, mas sempre com seus sonhos. Examinada criticamente a história do marido de Amália (no naufrágio do “Amália”), insinua-se a história do cemitério assombrado, quando o seu Francolino mais desfaz crendices do que recolhe causos. A narrativa incorpora seções e seções (a “ladainha”), na sua aparência ingênua, porém azeitados criticamente.
Péricles Prade, de outra parte, em Talvez a primeira e última carta, escrita dia 14 de março de 1983, pela bruxa Benta, que manifesta “a minha indignação com o teor de uma de suas narrativas publicadas no livro O Fantástico na Ilha de Santa Catarina, o texto intitulado Bruxas Gêmeas, conclui com ameaça fatal: Se até amanhã, dia 15, eu não for atendida, mudando o que deve ser mudado, morrerá…”. O criador (ou compilador) não fugia do poder das criaturas!
Entretanto, Franklin Cascaes não morreu; encantou-se. E sua presença de bruxo admirável prossegue. A montagem de O Presépio, de Adolfo Boos Jr., em tempos natalinos, sob a figueira da Praça, apresenta o processo mais importante do que o processado, talvez exatamente porque está ausente a figura de Cascaes. Distante modelo original perdido, o criador sempre em renovação, todos exigem seu direito de opinião “estética”, como em futebol todos se julgam técnicos. É o implícito que clama! O diário da virgem desaparecida, de Olsen Jr., adverte: “embora hoje ninguém acredite mais em bruxas, mas que elas existem, existem”. Retomando em boa ótica a crendice bruxólica nesta Ilha da Magia, bem como um fato nada estranho às tradições açorianas (a fuga-rapto de adolescente), um caso de “fado bruxólico” se corporifica no sintético diário, astuciosamente reconstituído por ardis do narrador, que vai desfiando os fios dessa meada de aparência policialesca. Enfim, Noites de encantamento, de Raul Caldas Filho, confirma que bruxas não povoam apenas a Ilha de Santa Catarina, pois, cerca de um mês após a morte de Cascaes, veio à Ilha Natasha, sétima filha de um casal que viera ao Rio de Janeiro, fugindo dos horrores da Segunda Guerra Mundial na Ucrânia. E veio com todos os direitos: “Sou então uma bruxa”.
Os mestres do conto catarinense assumiram um desafio inusitado: incorporar à ficção a conhecida personalidade real de Franklin Cascaes, prestando-lhe digna homenagem. Se não é habitual nem conveniente submeter o artista a assunto encomendado, saíram-se os escritores de maneira digna de aplauso. Nosso “mestre bruxo” recebeu um preito honroso e nossa literatura resultou engrandecida. Depoimento de Peninha – Gelci José Coelho – valoriza o imortal bruxo.
1 Comentário
pretendo criar um (CTA)centro de tradições açorianas.
preciso de informações sobre o assunto ficaria grato se me enviasem informações, para execusão deste progeto que pretendo montar em florianópolis parte sul da ilha da magia.