Quem mora de frente para uma lagoa, ou próximo ao mar, tende a querer admirar a vista da natureza, ainda mais em uma cidade com quase 500 mil habitantes. Mas não era assim em Piratininga, bairro de Niterói (RJ) onde está a imensa lagoa homônima e que, até há pouco tempo, era inóspita. “Estava cheia de esgoto, entulho, lixo, até desova de cadáveres. Ninguém passava perto, tanto que as casas nem estão de frente para a lagoa, mas de costas”, diz Dionê Castro, servidora do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) cedida à prefeitura do município vizinho ao Rio. Ela está à frente de um premiado projeto de revitalização que, guardadas as proporções, transformou a área em uma espécie de Pantanal fluminense nos últimos dois anos. “A afluência de fauna é tão impressionante que moradores perguntam se soltamos pássaros lá. Identificamos um ninhal de jacarés e cercamos essa área, hoje um berçário. Tem jiboia, colhereiro, garça.”
O Parque Orla Piratininga exemplifica um tipo de iniciativa que tem sido mais comum em metrópoles como resposta a problemas da ocupação desordenada e que privilegia a infraestrutura cinza em vez da verde: são soluções baseadas na natureza, que ajudam a tornar as cidades mais resilientes a eventos climáticos extremos e geram benefícios adicionais para a sociedade, a economia e o meio ambiente. “A grande beleza dessas soluções é justamente o fato de terem múltiplos benefícios. Tratam drenagem, deslizamentos, calor”, diz Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano no WRI Brasil. “Têm bom impacto na restauração e conservação da biodiversidade urbana, com ações como a renaturalização de corpos hídricos e plantio de mudas nativas, que impactam na manutenção e recuperação da fauna e da flora.”
Com investimento de cerca de R$ 100 milhões, o projeto em Piratininga começou a ser implementado em agosto de 2020 e tem conclusão prevista para novembro deste ano. São 11 quilômetros de perímetro nos quais, além de 35 mil m² de jardins filtrantes, há uma biovaleta de cerca de 4 km, que trata as águas de escoamento superficial antes de entrarem na lagoa. Em junho passado, foi premiado como melhor projeto de sustentabilidade ambiental urbana da América Latina e Caribe no evento Latam Smart City Awards.
“As soluções baseadas na natureza ainda são pouco conhecidas no Brasil. Elas buscam adaptar as cidades à crise do clima, e ações como os jardins filtrantes, parques lineares e agricultura urbana também contribuem para a biodiversidade”, diz Zuleica Goulart, coordenadora do programa Cidades Sustentáveis, conduzido pelo instituto de mesmo nome e financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF). Ela cita o exemplo do Reconecta, projeto de corredores ecológicos que buscam conectar fragmentos de Mata Atlântica em 20 cidades da região metropolitana de Campinas (SP), permitindo circulação de animais e dispersão de sementes. Outra cidade com projeto semelhante é Fortaleza, onde um parque linear de 134 ha composto por 19 trechos interliga dois açudes e uma lagoa.
“As áreas urbanas têm um papel muito importante de manutenção da conexão da fauna e da flora. Os parques lineares são elementos fundamentais tanto para a drenagem como no mosaico das áreas de conectividade. São um corredor dentro da cidade, com papel na proteção da biodiversidade”, diz Evers, do WRI Brasil, que apoiou o aprimoramento dos mapas dos corredores verdes em Campinas.
Outra solução que tem proliferado são as plantações urbanas, que cumprem a dupla função de auxiliar na biodiversidade e na segurança alimentar. Curitiba lançou em 2020 sua primeira fazenda urbana, com 4.000 m² para cultivo de alimentos orgânicos, e anunciou uma segunda unidade, de 11 mil m², no ano passado. A capital catarinense criou o programa Cultiva Floripa, com hortas em áreas verdes de lazer e em prédios públicos – hoje, há mais de uma centena. Teresina tem maior horta urbana da América Latina, um cinturão verde de mais de 5 km. Em Belo Horizonte, foram implementadas 11 “agroflorestas urbanas”.
Na capital mineira destacam-se também duas iniciativas da prefeitura focadas em insetos: a biofábrica de joaninhas e crisopídeos, que produz em massa esses bichinhos voadores que fazem controle biológico de pragas em áreas verdes e hortas urbanas – mais de 110 mil deles foram produzidos e distribuídos desde 2018 -, e um projeto-piloto que incentiva a criação de abelhas sem ferrão em áreas urbanas, mirando o papel crucial da polinização feita pelo inseto para a biodiversidade, além da produção de mel, própolis e geleia real. Oito colônias foram espalhadas no Parque Municipal das Mangabeiras.
“A série de eventos extremos que temos vivenciado deixa cada vez mais clara a necessidade de proteger a biodiversidade, recuperar a infraestrutura verde, explorando parques lineares, arborização de ruas, jardins de chuva, telhados verdes, essas soluções copiadas da natureza”, diz Gabriela Di Giulio, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. “Temos feito um esforço dentro da comunidade científica de destacar as contribuições da natureza para as pessoas, que incluem desde serviços de regulação do clima e da água até o controle de pragas e de doenças.”
(Valor Econômico – Biodiversidade, 04/10/2023)
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