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Emergência climática e o futuro das cidades

“Pensar globalmente e agir localmente.” Essa frase, que circula livremente entre grupos de acadêmicos, ativistas, servidores públicos e também entre a iniciativa privada, tem influenciado diferentes áreas há anos, de teorias sociológicas a agências de publicidade e propaganda. Seu berço vem dos movimentos socioambientais e da sociologia da globalização. A ideia por trás dela é de que as escalas global e local não se excluem mutuamente, estando, pelo contrário, imbricadas. O local é um aspecto do global, com ele interagindo de forma dinâmica.

Agenda 21, conhecido documento entre os resultantes da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – RIO 92, é um dos corolários desse pensamento. Mais do que uma tentativa de integrar diferentes temas, a Agenda 21 representou um chamado público para a ação coordenada entre as distintas escalas geográficas e organizacionais. Reconhece que a mudança necessária não pode simplesmente depender das políticas dos Estados nacionais, mas da articulação destas com iniciativas dos poderes subnacionais, das instituições locais, das empresas e dos grupos da sociedade civil.

Já não se pode dizer que a ideia é nova. São no mínimo trinta anos desde que começou a ser veiculada. Chegou a ser anunciada como a grande máxima das questões socioambientais para o século XXI por vários especialistas. Entretanto, sua realização prática e aplicação no âmbito das políticas públicas está bem distante do ideal.

Quando se fala em mudanças climáticas, um fenômeno multifacetado de proporções mundiais e consequências tão profundas, ainda prepondera uma visão de que cabe aos Estados nacionais e aos organismos multilaterais a responsabilidade pela mitigação de impactos e pelas ações de redução da emissão de gases de efeito estufa. O debate não raramente é internacionalizado e travado em arenas nas quais os governos dos países são os protagonistas, com pouca ou nenhuma voz para governos locais ou sociedade civil.

É bem verdade que muitas das iniciativas necessárias para enfrentar a crise socioambiental e climática dependem de medidas macroeconômicas, de regulação de setores produtivos, de políticas de proteção ambiental de grande escala, de mudanças nos marcos regulatórios na legislação nacional, entre outras medidas que são de competência dos poderes nacionais. No entanto, é uma ilusão pensar que a resposta virá unicamente desse lugar, ou que virá de um só lugar.

Uma crise de tão grandes proporções exige uma metamorfose na geopolítica global para reconhecer que existem outros atores que necessitam de espaço na mesa. A resposta estará no esforço articulado de todos os setores da sociedade e dos poderes públicos. As cidades e os grupos organizados da sociedade civil não podem mais ficar nos espaços marginais de decisão, bradando para serem escutados. Até mesmo porque são eles que, em seus territórios, encontram-se face a face com as consequências da crise, tendo de lidar com eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes.

Há tempos que as mudanças do clima não são mais assunto do futuro. Elas estão presentes e intensificam-se, com consequências diretas nas cidades.

Estudos científicos referendados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) indicam que as atividades humanas já causaram um aumento médio da temperatura global de cerca de 1 °C, comparando-se com os níveis pré-industriais.1 Os impactos são perceptíveis, com a alteração de ecossistemas oceânicos e terrestres, maior frequência de eventos climáticos e meteorológicos extremos e elevação do nível do mar.

O quadro atual, que tende a se agravar, é de que a humanidade conviverá com uma estranha combinação de estiagens e chuvas intensas, motivada por regimes hídricos irregulares. Fenômenos como El Niño e La Niña serão ainda mais frequentes. Processos de desertificação afetarão mais regiões e abalarão a produção de alimentos. A elevação do nível do mar levará a migrações forçadas e ao aparecimento de refugiados do clima. Tudo isso e mais um pouco acarretando consequências concretas nos territórios, causando danos às pessoas e mais acentuadamente aos segmentos vulneráveis de nossa população.

E, se ultrapassamos a marca de mais da metade da população mundial vivendo em cidades – mais de 85% no caso brasileiro –, é aí que muitos dos efeitos das mudanças do clima serão sentidos e precisam ser encarados de forma responsável.

As cidades têm enfrentado maiores problemas de abastecimento hídrico gerados pela redução dos níveis dos reservatórios e sofrem com ainda mais inundações e alagamentos decorrentes de chuvas intensas combinadas com altos níveis de impermeabilização do solo urbano. A qualidade do ar também vem sendo afetada, causando aumento de doenças respiratórias na população. Cidades litorâneas já sofrem com a elevação dos níveis do mar e a erosão costeira, sendo relativamente alta a probabilidade de perderem parte de seus territórios com o avanço das águas. Tempestades, ciclones e outros eventos meteorológicos extremos também têm causado enormes prejuízos às vidas e à economia urbana. São muitas as consequências, e não se pode mais dizer, como anos atrás, que as mudanças climáticas são uma ameaça silenciosa. São, ao contrário, uma ruidosa realidade do tempo presente.

No entanto, apesar dos evidentes impactos, os governos locais estão atrasados em assumir sua responsabilidade para a mitigação e a adaptação. No Brasil, na esteira do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, instituído pela Portaria n. 150, de 10 de maio de 2016, caberia aos municípios elaborar e colocar em prática planos locais de adaptação. Se as políticas do governo federal nessa área sofreram fortes retrocessos nos anos recentes, em muitos municípios elas nem sequer existem.

Igualmente, salvo raras exceções, os governos locais não estão suficientemente preparados para responder a eventos danosos. O ordenamento territorial tem sido mais fator de exclusão e injustiças socioambientais do que de prevenção de desastres.

O futuro das cidades diante da emergência climática requer a efetivação de uma agenda imediata de mitigação e adaptação que se sustente em soluções baseadas na natureza. De acordo com a Plataforma de Políticas de Soluções Baseadas na Natureza, da Universidade de Oxford, elas podem ser entendidas como “ações que envolvem trabalhar e melhorar os hábitats naturais para o bem da sociedade, por exemplo, por meio de restauração, manejo e proteção”.2 Significa dizer que a natureza é parte importante da solução, o que soa óbvio, embora não seja uma prática nas políticas públicas. Preservar ou restaurar ecossistemas auxilia sobremaneira no enfrentamento das mudanças do clima. No entanto, o modelo de urbanização tem caminhado no sentido contrário, com crescimento horizontal do tecido urbano sem infraestrutura adequada e avançando sobre territórios que deveriam ser conservados. Sobretudo, trata-se de uma lógica desigual, excludente e injusta, que não possibilita alternativas adequadas a grande parte da população.

Outro componente que deve necessariamente ser considerado pelos governos locais é a efetivação da função socioambiental da terra, da propriedade e da cidade, elemento essencial para garantir uma distribuição mais equitativa dos benefícios de qualquer sistema econômico, assim como uma abordagem mais equilibrada e sustentável do desenvolvimento. Envolve também garantir segurança de posse, direito ao território e à moradia adequada, serviços básicos e infraestrutura em todos os tipos de assentamentos, tanto formais quanto informais. Isso não significa convalidar situações de vulnerabilidade socioambiental de assentamentos precários, e sim dar-lhes tratamento justo e condizente com os parâmetros de direitos humanos em processos de regularização urbanística e fundiária, com melhorias da qualidade ambiental.

A restauração ambiental em benefício da sociedade em geral, priorizando aqueles com maior necessidade, é uma obrigação dos governos locais e uma oportunidade para as comunidades criarem alternativas de trabalho sustentáveis e zelarem pelo meio ambiente em que vivem.

Uma abordagem participativa sob a liderança das comunidades também deve ser adotada para abordar perdas e danos, evitar despejos forçados e realojar, como último recurso, as comunidades afetadas pelas consequências das mudanças climáticas, como secas, inundações, deslizamentos de terra e aumento do nível do mar, seguindo os padrões de direitos humanos de moradia, serviços básicos, direitos dos trabalhadores, e assim por diante.

Paralelamente, as cidades devem reconhecer que a crise do clima deriva de um modelo de produção e consumo que acirra as desigualdades sociais e espaciais. É preciso romper com esse ciclo e evitar que as respostas públicas excluam ainda mais a população de baixa renda, criminalizando-a ou promovendo uma gentrificação por motivação ambiental nos territórios.

As chamadas “políticas verdes” não podem ser um produto de luxo destinado apenas às camadas mais abastadas dos centros urbanos. Jardins verticais em fachadas de prédios, comumente vistos em áreas valorizadas, contribuem muito menos para a captura de carbono do que a ampliação de áreas verdes nas periferias ou do que processos de urbanização e melhorias do ambiente em assentamentos populares, essas, sim, medidas relevantes de enfrentamento à crise.

Por seu turno, os mecanismos de exclusão não operam apenas com base em capacidades econômicas. Marcadores de gênero, raça, etnia e origem, entre outros, fazem parte da equação que impõe a parte da população impactos desproporcionais da crise climática. As políticas locais não podem se olvidar de uma perspectiva que trate todas essas questões estruturais de forma interseccional.

É fundamental a participação dos habitantes em todos os processos de planejamento, inclusive os de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Essa participação deve dar atenção especial às propostas que partem das necessidades das mulheres, indígenas, pessoas negras, migrantes, pessoas com deficiência, crianças, jovens e pobres. A construção de sociedades resilientes ao clima começa com a compreensão dos desafios enfrentados pelas comunidades vulneráveis.

Por outro lado, mais do que lidar com os efeitos em seus territórios, as cidades precisam reconhecer sua responsabilidade como causadoras da crise. De acordo com especialistas do World Resources Institute (WRI), elas consomem 65% da energia produzida globalmente e com tendências de aumento, sendo responsáveis por 70% das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera relacionados à energia.

As cidades também geram resíduos em excesso e, no caso brasileiro, os destinam de forma inadequada. A insuficiência ou total ausência de uma política de separação de recicláveis e orgânicos e a consequente destinação incorreta fazem que um volume gigantesco de resíduos seja levado a aterros, onde sua decomposição produzirá mais gases de efeito estufa.

Outro fator relevante que contribui para o agravamento das mudanças do clima é o modelo de transporte baseado preponderantemente em combustíveis fósseis e no automóvel individual. Parte significativa da poluição gerada nas cidades advém do sistema de mobilidade, ainda pouco afeito a tecnologias de carbono zero, ao transporte coletivo e à mobilidade ativa.

É preciso admitir que as cidades são culpadas tanto quanto vítimas e, nesse sentido, investir fortemente em mudanças de paradigmas com relação a energias limpas, economias de zero carbono e investimentos verdes, mas sem perder de vista que essas transformações não podem se descolar de uma perspectiva de justiça e equidade social, racial e de gênero, comprometida com a democracia e o direito à cidade de todas as pessoas.

O futuro das cidades diante da emergência climática precisa ser um futuro de direitos, de equidade e cidadania inclusiva e de gestão coletiva dos bens comuns.

*Henrique Botelho Frota é assessor da Plataforma Global pelo Direito à Cidade e coordenador executivo do Instituto Pólis, organização integrante do Observatório do Clima.

(Le Monde Diplomatique, 01/12/2020)

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