Água. Mais abundante dos recursos naturais do planeta Terra, a água está presente em tantos momentos no nosso cotidiano que a sua importância passa despercebida. Porém, quando as torneiras secam, ficamos engessados. 71% da superfície terrestre é coberta por água, compreendendo oceanos e águas continentais. Entretanto, 97,5% é salgada e apenas 2,5% da água disponível é doce. Esse pequeno percentual é responsável pela manutenção de sistemas fundamentais para a vida dos seres humanos e de animais. É a água doce que está no centro da produção de alimentos, importante para a preservação ambiental, geração de energia, manutenção dos padrões de saúde pública.
Confira o vídeo sobre Escassez de água e outros da série do UFSC Explica no canal do YouTube.
No décimo episódio do UFSC Explica: escassez de água, três pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Regina Rodrigues, professora de Oceanografia (UFSC), e Pedro Luiz Borges Chaffe e Ramon Dalsasso, professores do Departamento de Engenharia Sanitária da UFSC, falam sobre a escassez de água no planeta, suas consequências, possíveis soluções e o cenário em Santa Catarina. Para a produção desta reportagem, também foi entrevistado o engenheiro civil e superintendente da Região Metropolitana da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), Joel Horstmann, que descreve ações de prevenção e planejamento para enfrentar a crise hídrica.
“Hoje, no mundo, pelo menos 4 bilhões de pessoas passam por alguma situação de crise hídrica de pelo menos um mês de duração; 500 milhões de pessoas passam por crise hídrica todo ano; 80% da população mundial sofre com insegurança hídrica e escassez. Esse é reconhecidamente o maior problema que precisamos enfrentar nos século XXI”. Essa é a afirmação de Pedro Luiz Borges Chaffe, professor do Departamento de Engenharia Sanitária da UFSC, que pesquisa Hidrologia, Hidrometeorologia e Monitoramento e Modelagem Hidrológica.
A falta de água é um problema social, humano, ambiental e econômico. Entre os meses de junho a setembro de 2019, a Grande Florianópolis registrou falta d’água devido ao longo período de estiagem. Em outubro, o nível da Lagoa do Peri, principal aquífero natural de água doce de Florianópolis e área de preservação ambiental, caiu drasticamente em decorrência da falta de chuvas.
Segundo Regina Rodrigues, professora de Oceanografia da UFSC e integrante do Painel Intergovernamental de Mudanças Climática das Nações Unidas (IPCC), há dois aspectos que influenciam a falta de água: climático e demanda. “No primeiro ponto, locais propensos à seca estão ficando cada vez mais secos e o oposto também, em regiões mais úmidas as chuvas têm sido torrenciais em pequenos espaços de tempo. Já sobre a demanda, podemos adotar o conceito de Nexus, definido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentos e a Agricultura (FAO/Nações Unidas), de que seguranças hídrica, alimentar e energética são eixos interligados e um afeta o outro por conta da água. Quando falta água, falta para abastecimento direto, alimento e energia. A gente perde qualidade de vida, pois a água e seus três eixos são essenciais para o nosso bem-estar”.
No aspecto climático, Santa Catarina está numa região de transição influenciada por mudanças nas zonas tropical e temperada, como também por mecanismos que trazem chuvas tropicais. “Com a expansão dos trópicos, Santa Catarina passa a se assemelhar à região Sudeste e as chuvas de verão serão mais afetadas pelo aumento da temperatura”, frisa Regina.
Para Ramon Lucas Dalsasso, professor do Departamento de Engenharia Sanitária da UFSC e pesquisador em sistemas de tratamento e abastecimento de água, além dos eventos extremos, alguma deficiência no abastecimento também pode provocar a falta dela. “Pode ser um problema desde o sistema de produção, adução, reserva ou unidades de bombeamento. A continuidade do fornecimento de água é de responsabilidade da prestadora do serviço. No caso da falta de água por conta de uma catástrofe natural ou período de estiagem, ela não necessariamente tem que estar com toda a estrutura previamente montada, mas o gerenciamento dessa crise continua sendo de responsabilidade da prestadora de serviço”.
O consumo de água ao redor do mundo é muito variável, sendo que dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que o consumo médio diário de uma pessoa é de 110 litros. Em Santa Catarina, o consumo médio, segundo a prestadora de serviço, é de 200 litros/dia. Durante o período de estiagem na Grande Florianópolis, os alertas e as campanhas solicitando o uso racional de água surtiram efeito. “Verificamos que, durante a estiagem, a população colaborou. Porém, com as chuvas e as notícias de normalização no sistema de abastecimento foram divulgadas, a população retomou ao consumo normal”, diz Joel Horstmann, superintendente da Região Metropolitana da Casan.
O consumo de água doce no mundo é distribuído da seguinte forma: 70% para agricultura, 22% para indústria e 8% doméstico, segundo a FAO. O alerta em torno da crise hídrica no mundo exige medidas eficientes para que os impactos econômicos, sociais e ambientais sejam minimizados. “O PIB de Santa Catarina é liderado pela agricultura, precisamos repensar a nossa estratégia”, enaltece Regina. Para a pesquisadora, o problema no Brasil é mais intenso ainda: 65% da eletricidade gerada no Brasil vem de hidroelétricas. “A falta de água vai impactar a produção de alimentos, mas também a produção de energia, além do abastecimento direto de água”.
Por isso, a conscientização é primordial e não está limitada, somente, ao consumo doméstico. É necessário lançar olhares críticos em torno da produção de alimentos, na preservação ambiental, no tratamento de esgoto, no incentivo à agricultura familiar, na redução de consumo e no controle de perdas. “Um ano seco provoca a quebra de safra, e sem água não temos a geração de energia. O alimento e a energia ficam mais caros afetando, diretamente, a população mais pobre”, diz Regina. Para Pedro, a população mais pobre é a que mais sofrerá com a falta de água. “Pode ser que em algum lugar terá água, mas não haverá dinheiro para construir infraestrutura de distribuição suficiente”.
O desperdício de alimentos também é um problema a ser enfrentado: se 70% da nossa água é usada para produzir alimentos e 30% deles vão para o lixo, estamos desperdiçando recursos. “Ao reduzir o desperdício de alimentos estaremos economizando água. É algo que podemos fazer”, reforça a pesquisadora.
Os vazamentos no sistema de abastecimento, chamados de perdas, também contribuem para o desperdício de água, que neste caso é tratada. O índice de perda em Florianópolis é de 40%, e a média nacional é de 36 a 38%. “Uma das medidas para atenuar a falta de água seria investir na redução das perdas”, revela Ramon.
Existem dois tipos de perdas: 1. físicas, em virtude de vazamentos; 2. não física, que é a ligação clandestina, ligação sem faturamento, água de hidrante, caminhão-pipa, fraudes. “Em Florianópolis, 20% é física e 20% não física. Para reduzir isso, estamos setorizando o sistema por bairro para verificar onde estão as perdas. Com a instalação de macromedidores conseguimos ver o consumo médio daquele bairro e comparar com o consumo à noite, que naturalmente precisa cair, chamada de mínima noturna. Assim, conseguimos identificar se naquele região há vazamento”, explica Joel, acrescentando que há uma equipe de geofonamento que atua nas ruas para descobridor vazamentos invisíveis/ocultos. “No período de estiagem vimos que aumentaram os vazamentos e, para arrumá-los, contratamos uma empresa para atuar na recuperação imediata de vazamentos”, diz o superintendente.
Essa estratégia reduziu em 1% a perda de água potável em Florianópolis. Entretanto, a colaboração da população para informar sobre vazamentos é fundamental. Isso pode ser feito por meio do telefone 0800 643 0195 ou aplicativo oficial da Casan.
Além de todas essas ações, o combate ao desmatamento é essencial para a preservação da água de duas formas: a floresta protege os mananciais e o recurso hídrico; e há a redução da emissão de gás carbônico para coibir os efeitos das mudanças climáticas (secas). “Como sociedade, nós mudamos basicamente 2/3 da superfície terrestre, mudamos o uso e a ocupação da terra, sendo que o aquecimento global influência a disponibilidade hídrica”, salienta Pedro.
Para Regina, tudo isso está ligado ao Meio Ambiente e necessita de uma iniciativa da sociedade. “Com ações conjuntas conseguimos ter resiliência para enfrentar os problemas. Não tem uma ação sozinha que vá solucionar esse problema”.
Ramon menciona que a crise hídrica não atingiu somente Florianópolis, outras cidades catarinenses e brasileiras sofreram com o período de estiagem. “Os eventos climáticos extremos têm se tornado mais frequentes, localmente e globalmente, e isso afeta o abastecimento e as populações. Precisamos aprender e nos planejarmos para evitar que isso aconteça futuramente”.
O ciclo da água na Região Metropolitana
As projeções mostram um cenário complicado para o estado catarinense, que deverá enfrentar invernos cada vez mais secos e verões com chuvas intensas. Na Grande Florianópolis, o longo período de seca deste ano exigiu redução de consumo e remanejamento na distribuição: choveu 110 milímetros nos quatro meses, quando o normal é chover 120mm por mês. As chuvas voltaram em outubro, com precipitação de 140mm, e 125mm de 1° a 11 de novembro, na Região Metropolitana. “O impacto disso no abastecimento de água é que ela vem torrencial e se perde para o oceano, vira salgada, e acabou. A chuva mais espaçada pode ser absorvida pelo solo, entrar no lençol freático e ficar disponível por mais tempo”, frisa Regina.
Para atender a demanda durante períodos de estiagem, a Região Metropolitana de Florianópolis conta com três sistemas de abastecimento de água:
O problema de abastecimento este ano aconteceu no Rio Vargem do Braço, que sofreu estiagem, e na Lagoa do Peri, devido ao baixo nível. Os sistemas são monitorados, em momentos de crise, 24 horas por dia. Assim, a prestadora de serviço consegue remanejar a distribuição de água para que os impactos sejam menores. “Durante a estiagem, deixamos de captar 300 litros por segundo de água no Rio Vargem do Braço e reduzimos a captação na Lagoa do Peri. Foram necessárias algumas medidas emergenciais: acionar a ETA do Campeche; abastecer o Monte Verde, Saco Grande e Cacupé com o Sistema Costa Norte; e abastecer o bairro Carianos com o Sistema Costa Sul/Leste. Isso é possível porque os sistemas são interligados e conseguimos acompanhar, remotamente, a vazão e a pressão da distribuição”, explica Joel.
O maior problema em períodos de estiagem na Grande Florianópolis está no abastecimento em final de rede e em regiões altas. “A água tem um caminho longo a percorrer até chegar à torneira. Quando não é possível abastecer, entramos com caminhão-pipa, mas o ideal é que as unidades consumidoras tenham reservatórios adequados”, salienta o superintendente da Casan.
Em 2014, a cidade de São Paulo enfrentou a maior crise hídrica dos últimos 80 anos. O Sistema Cantareira, que atendia 8,8 milhões de pessoas, esgotou. Sem chuvas, aumento populacional, poluição e falta de planejamento, a cidade viveu o caos. Para amenizar o problema, seis reservatórios são interligados ao Sistema Cantareira, composto por 48 quilômetros de túneis e uma estação de bombeamento de alta tecnologia para ultrapassar a barreira física da Serra da Cantareira.
Se tomando como exemplo o que aconteceu com São Paulo e diante das projeções de longos períodos de seca para Santa Catarina, o lógico seria que a Grande Florianópolis investisse em reservatórios, por exemplo, para armazenar água quando há grande volume de chuvas. “São Paulo tem reservatório próprio porque eles têm grandes volumes de água no verão e seguram a água para usarem o ano todo. Em Florianópolis, além do aumento de demanda, estamos entrando num clima mais semelhante ao do Sudeste, sem chuvas vindas em várias estações, assim precisamos pensar na nossa estrutura de abastecimento de água”, comenta Regina.
A crise em Cantareira, na região mais rica do país, revelou a falta de planejamento: já se sabia da capacidade hídrica desde 1980. “A decisão precisa ser da sociedade e do poder público para investir e medir quais os riscos aceitáveis. Temos que pensar qual o impacto aceitável: ficar sem água uma vez por ano, dois meses por ano? A crise hídrica só acontece porque não estamos atendendo uma demanda, e o nosso planejamento precisa definir usos que precisam ser atendidos”, alerta Pedro.
Ramon enfatiza que o planejamento é primordial para prevenir a falta de água durante os períodos de seca. “As vazões de rios e mananciais ao longo dos anos têm um ciclo e esses fatores são levados em conta nos estudos de concepção do sistema de captação de água. Outro ponto é o crescimento populacional, que faz com que a demanda sofra um ritmo mais acelerado do que se consegue implantar”.
Segundo Joel, a Casan tem acompanhado ao longo do tempo que as estiagens, como as de São Paulo, não estão chegando à região. Diante do cenário de estiagem deste ano, medidas estruturais foram tomadas para aumentar a captação de água do Rio Cubatão, porém investimentos em reservatórios para armazenar água da chuva estão descartados no momento. “Investimos em um floco decantador, localizado em Palhoça, para melhorar a qualidade da água captada, além do aumento da captação do Rio Cubatão para não sofrermos mais com estiagens no Rio Vargem do Braço”.
Para Regina, o sistema público precisa estar de acordo com a ciência para que o problema de escassez de água seja abordado com gestão e visão. “No exterior, as políticas públicas são definidas com a ajuda da comunidade científica, no Brasil isso não ocorre. O caminho é conscientizar a população sobre a importância da ciência para o desenvolvimento humano e a qualidade do bem-estar”, finaliza ela.
(UFSC, 14/11/2019)
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