“Estamos realmente em tempos difíceis, mas é fundamental não ficarmos nos lamentamos apenas. Estamos encerrando um ciclo no Brasil e já começamos o próximo. Sem dúvida o futuro já começou.” Com essas palavras, a arquiteta e professora universitária Ermínia Maricato iniciou a aula magna em celebração aos 40 anos do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O evento ocorreu na segunda-feira, 5 de maio, no auditório do Centro de Cultura e Eventos.
Além de pesquisadora, Ermínia também é ativista política. Paralelamente à carreira acadêmica, sempre esteve envolvida em diversos movimentos sociais, além de ocupar diferentes cargos públicos. Em todos esses espaços, sua prioridade era — e ainda é — a luta pela cidade: “As cidades brasileiras devem fazer parte da discussão sobre conjuntura política, coisa que às vezes muitos dos nossos companheiros e companheiras esquecem. É tarefa nossa colocar as cidades na agenda política do Brasil de hoje e dos próximos anos.”
Ermínia descreveu o processo de desindustrialização pelo qual o Brasil passou, a partir de 1980, e suas consequências para o cenário atual. “Perdemos indústrias e tivemos a emergência do agronegócio, que hoje é hegemônico do ponto de vista econômico no país. Fomos eleitos pelo capitalismo global como uma espécie de celeiro do mundo. Somos os maiores produtores de grãos e de carnes. Temos uma produção espantosa de aves para exportação. Passamos por uma reestruturação capitalista e entramos no chamado período do neoliberalismo, que é marcado por grandes conglomerados financeiros, com concentração e centralização de capitais. Presenciamos o que Octavio Ianni já chamava a atenção há muito tempo: alguns desses conglomerados são mais poderosos do que estados nacionais. Algumas multinacionais são mais importantes do que qualquer país da África, por exemplo, ou de vários países da América Latina.”
Nesse processo, as cidades ficaram em segundo plano, sofrendo um crescimento intenso e desordenado. Com a falta de investimento público nas periferias e a ausência de opção para as populações que migravam das zonas rurais para as urbanas, as ocupações ilegais tornarem-se rotineiras. “A ocupação ilegal de terra é enorme na maior parte das cidades. Tem gente que se diz contra a ocupação, porque ‘não é certo’. Mas e se a pessoa não tem alternativa? O resultado disso foi essa formação de bairros periféricos, construídos pelos próprios moradores, sem lei, sem financiamento público, sem arquitetos, sem engenheiros. É uma confusão.” Ela salientou ainda que esses bairros que cresceram de forma irregular e desordenada, o problema da insalubridade tornou-se crônico: “Crianças e idosos dormem em cômodos que não recebem luz do sol em nenhuma hora do dia. Não tem ventilação, não tem iluminação. As doenças respiratórias nesses lugares chegam quase ao nível de epidemia.”
A pesquisadora argumentou que a arquitetura e o urbanismo estão diretamente relacionados à saúde, acumulação de capital, exploração, mercado. “Tudo isso está ligado. Qualquer projeto está inserido nesse universo de determinações que deve ser considerado.” Ela apresentou gráficos e tabelas que explicitavam as discrepâncias sociais dentro de um mesmo perímetro urbano. “Em parte da cidade existe planejamento urbano, lei de zoneamento do solo, código de obras. Mas nada disso se aplica a outra parte da cidade. Estamos falando de uma determinação social. O problema da ocupação ilegal não se restringe à questão da moradia, porque ninguém mora apenas dentro de uma habitação: as pessoas moram na cidade. Não existe habitação sem cidade. Por isso é fundamental levar água, esgoto, energia elétrica, iluminação pública, pavimentação de ruas, coleta do lixo, segurança, escola, creche e transporte para todos esses lugares.”
A distribuição desigual de investimento público em diferentes partes das cidades está relacionada, segundo ela, à especulação imobiliária: “A cidade é o grande negócio, é a fonte de renda para proprietários de terrenos e de imóveis. A cidade é o pasto dos capitais que compõem o circuito imobiliário, como o de construção, incorporação, financeiro etc. Essa desigualdade é estrutural e está na raiz da nossa história. Ela vem desde a escravidão, com a desconsideração pelo outro e o desprestígio do trabalhador.” Entretanto, apesar do cenário desolador, Ermínia também apresentou exemplos positivos da história recente do país, reforçando a importância da mobilização popular: “É possível fazer. Não é delírio falar de moradia social com arquitetura boa, barata e econômica. Isso já aconteceu. Devemos lutar pela urbanização de áreas em situação precária, como favelas e periferias.”
Todas essas reivindicações, para a pesquisadora, podem ser atendidas com a legislação já existente: “Temos um arcabouço legal que é dos mais avançados do mundo. Além da constituição, temos o estatuto da cidade, a legislação de consórcios públicos, a lei do saneamento, a lei dos resíduos sólidos, a lei da mobilidade, o estatuto da metrópole… A maior parte das cidades brasileiras têm plano diretor. É lei para ninguém botar defeito! Temos uma legislação avançada, pois já lutamos muito por lei. O problema é que elas não foram aplicadas e sequer o judiciário as conhece.” Além das leis avançadas, Ermínia ressaltou que o conhecimento técnico também está muito desenvolvido no país. “Temos profissionais mais do que habilitados para resolver nossos problemas. Mas nossos problemas não se resolvem apenas com plano diretor, lei e conhecimento técnico. É importante ter tudo isso. Mas é muito importante também a luta social.”
(Ufsc, 08/03/2018)
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