Imagine o rancho do Seu Getúlio, importante ponto de pesca e de cultura do Campeche, no sul da Ilha, derrubado. Um espaço com cerca de 50 anos de história ameaçado. Foi esta a primeira impressão que o próprio pescador Getúlio Manoel Inácio, de 65 anos, teve quando recebeu um auto de infração para demolição do local das mãos de fiscais da Fundação do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram).
Como assim derrubar o rancho, mô queridu? Tax tolo?
A história, no fim, pode ser resumida como um mal-entendido. Uma confusão que assustou pescadores e frequentadores do rancho de pesca mais famoso da Ilha.
— Tinha gente que aparecia correndo aqui no Campeche e me perguntava: como assim derrubaram o rancho? A notícia se espalhou e todo mundo se preocupou — contou o manezinho e pescador frequentador do local Ary José Martins, 80, cunhado de seu Getúlio.
Seu Getúlio, proprietário do Rancho de Pesca Manoel Rafael — nome de seu pai, que fora o dono do espaço antigo — ficou surpreso com a autuação que chegou na semana passada.
— A primeira notificação já pediu a demolição, com multa simples. Sendo que um rancho de pesca tem uma legislação diferente, por exemplo, para quem explora comercialmente uma área, que não é o nosso caso — explicou o pescador e musicista.
Sim, musicista porque seu Getúlio é maestro, e não só isso, dá aulas de música — com instrumentos que ele conseguiu através de doações — no próprio rancho. Outro maestros dão aulas gratuitas, de forma voluntária para a galera do Campeche que se arrisca no mundo musical. Seu Getúlio tem o maior orgulho em dizer que dali saíram professores de música, acadêmicos da Udesc e muita gente que foi encaminhada para ganhar uma graninha em orquestras e bandas.
O rancho também oferece aulas de capoeira para, como explica seu Getúlio, não deixar a criançada e os adolescentes ociosos; já ofereceu cursos de pescas de tainha para a comunidade, “para esta tradição não se perder”, contou seu Getúlio; é a garagem da canoa Glória, uma das maiores e mais importantes embarcações de pesca artesanal do Estado.
Além disso, serve de espaço de convivência para moradores mais antigos e pescadores do Campeche.
— Pessoal está sempre aqui jogando dominó, conversando, relembrando. Não temos bebida alcoólica aqui. Só servimos café para o pessoal que vem aqui jogar pelas manhãs — disse seu Getúlio.
Local de muita fé
O Rancho Manoel Rafael também é palco de uma missa que ocorre todos os anos, no dia 1º de maio. É a abertura da safra de tainha — que já virou tradicional e entrou para o calendário de eventos do município. O local enche de gente. O espaço guarda uma história linda e lendária do Campeche, da amizade do pai de seu Getúlio e do aviador francês Antoine Saint-Exupéri, o autor do famoso livro O Pequeno Príncipe, uma das obras mais vendidas e lidas até hoje (o livro é da década de 1940). Um desenho do príncipe loirinho, inclusive, está pendurado na parede do rancho.
“Olhólhó“. E mesmo assim queriam derrubar?
Levantamento, antes de qualquer coisa
Seu Getúlio se preocupou com a notificação da Floram e abriu a boca. Pediu ajuda para comunidade, vereadores e até para o Ministério Público Federal (MPF) em Florianópolis.
— A Floram disse que estava cumprindo ordens de um levantamento pedido pelo MPF — revelou o pescador.
De fato, o procurador da República Eduardo Barragan pediu um levantamento completo sobre todos os bens da união na área do Campeche, irregulares ou não. A ideia, segundo o procurador, é deixar a região às claras e com o levantamento, futuramente, avaliar caso por caso.
— Já faz alguns anos que venho trabalhando na localidade do Campeche com vários inquéritos. Venho pedindo ao poder público para fazer um levantamento completo sobre os bens da união, e não tinha resposta. Chegou um momento que tive que tomar uma medida mais drástica. Ajuizei uma ação com este objetivo, há mais ou menos um mês — explicou o Eduardo.
Neste levantamento, os órgãos, como Floram, teriam que identificar as comunidades tradicionais, as áreas de APP e, conforme o pedido do MPF, atuarem em situações que já estejam comprovadamente irregulares. Mas nesses casos, avalia Eduardo Barragan, o comum é enviar primeiro uma notificação e exigir documentos que possam justificar as construções e edificações, e depois, a autuação partiria para demolição ou embargo, se fosse necessário.
— No caso do seu Getúlio não cabe. Já se sabe há décadas da existência do rancho. Há uma série de documentos que respaldam a ocupação — afirmou o procurador.
O que diz a Floram
O procurador da República enviou um pedido de esclarecimentos à Floram, especificamente sobre o caso de seu Getúlio, e a fundação reconheceu que, durante o levantamento, os fiscais de meio ambiente acabaram autuando todas as edificações em APP (Área de Preservação Permanente) no Campeche. Foram cerca de 30 notificações. Segundo o procurador da Floram, David Nascimento, foi uma ação preventiva.
O restaurante de José Dória da Cunha, 59, o popular Zeca do Campeche, também foi um dos que recebeu a cartinha da Floram. Ele tem o comércio há 33 anos na localidade e também ficou surpreso com a autuação, mesmo depois de tantos anos. Mas ele está tranquilo. Enviou toda a documentação do espaço, que hoje é alugado.
Segundo o procurador da Floram, cada caso será analisado separadamente. Os notificados terão um prazo para apresentar documentos e recorrer de qualquer decisão. As irregularidades confirmadas serão enviadas ao MPF.
— É quase impossível, nestes casos, a demolição imediata de qualquer edificação nessa situação. Seria até ilegal — acalmou David.
O caso de seu Getúlio, afirmou o procurador, deve ser cancelado, pois deve ser reconhecido como atividade cultural durante o processo administrativo.
— No começo da semana que vem, Floram e União vão se reunir para delimitar o que é competência de cada um neste levantamento pedido pelo MPF. Vai ficar bem interessante quando terminar. O estudo ficará embasado e servirá de instrução para futuros processos administrativos — observou David.
O procurador da República, Eduardo Barragan, também avisou que deve ajuizar demais ações com pedidos de levantamentos de terras da União de outros bairros.
(DC, 08/12/2016)
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