Mais de 20 anos depois, a energia nuclear volta a se apresentar como alternativa para a matriz energética elétrica brasileira. De olho no crescimento econômico, o governo tem planos ambiciosos que envolvem desde a finalização do complexo de Angra III até mesmo projetos de outras quatro usinas, duas delas previstas para o Nordeste e duas para São Paulo.
Enquanto os projetos não saem do papel, entretanto, muito dinheiro escorre pelo ralo. Ao todo, a União já gastou R$ 1,5 bilhão com Angra III. Serão necessários mais R$ 7,3 bilhões para a conclusão das obras. Parada, do jeito que está, a usina custa ao bolso do contribuinte US$ 20 milhões por ano.
A geração de energia nuclear ganhou novo impulso com o aprofundamento da conscientização sobre as mudanças climáticas e o aquecimento global. É, sem sombra de dúvida, uma alternativa significativamente menos poluente que as termoelétricas queimadoras de carvão ou óleo. Tanto que, na última sexta-feira (22/02), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou um acordo de cooperação com a vizinha Argentina na área de energia nuclear. Ambos os países têm em comum o fato de retomar, agora, programas que tiveram seus embriões germinados durante as ditaduras militares.
Ainda assim, as polêmicas ao redor do tema estão longe de se dissipar. Governos e ambientalistas de todo o mundo estão divididos quando o assunto é energia nuclear. O fantasma de acidentes como o de Chernobyl, na Ucrânia, ainda é capaz de causar impacto poderoso na opinião pública. E os dejetos da produção nuclear continuam um problema relativamente sem solução. Por outro lado, cada vez mais não se pode ignorar as necessidades de geração de energia de um país em crescimento.
Segundo plano
Durante anos, o Brasil deixou para segundo plano investimentos na infra-estrutura energética. A conta foi cobrada no apagão de 2001. Uma ameaça que volta a pairar sobre os brasileiros a cada período prolongado sem chuvas, a exemplo do final do ano passado.
Aparentemente, dados os custos reais e simbólicos da produção nuclear, a questão nem precisaria ser discutida. Em 2007, apenas 2,84% da energia brasileira veio de Angra dos Reis (RJ), onde está localizado o complexo nuclear brasileiro. Mais de 90% saíram das portas de hidrelétricas. Pode parecer pouco, mas foi o suficiente para ser a segunda maior fonte de energia para o País, à frente das usinas de gás natural, carvão, óleo e biomassa.
Abastecimento
Diante da gigante usina hidrelétrica de Itaipu, por exemplo, com capacidade instalada para gerar aproximadamente 12 mil MegaWatts (MW), Angra I e seus 637 MW não chegam a impressionar. Mas quando se considera que a energia gerada por ela é suficiente para abastecer uma cidade como Florianópolis (SC), com população de um milhão de habitantes, a coisa começa a mudar de figura.
No último dia 16/02, a produção da usina foi interrompida para abastecimento de combustível e manutenção. A operação está prevista para ser reiniciada em meados de março. Angra II, com capacidade para 1.350 MW, tem um peso ainda maior na energia elétrica brasileira. Sozinha, ela consegue abastecer o equivalente a uma cidade como Curitiba (PR), com dois milhões de moradores.
Em 2001, somente um ano após sua entrada em operação e em pleno apagão, a usina viveu seus dias de glória, contribuindo decisivamente para a geração de energia da Região Sudeste. Juntas, Angra I e II produzem eletricidade o suficiente para abastecer metade do Estado do Rio de Janeiro. Não é algo que se possa ignorar.
Sexta maior reserva de urânio
A dependência das hidrelétricas também é preocupante. Isso porque, assim como boa parte das formas de geração de energia renováveis, como a eólica (vento), tão defendidas por ambientalistas, as usinas movidas a água dependem de fatores externos, como a chuva. As usinas nucleares não.
Hoje, Angra II funciona a 99,56% de sua capacidade. Algo impensável para outras formas de geração de energia. E o Brasil tem vantagens competitivas importantes na área. Com apenas 30% do território prospectado, tem a 6ª maior reserva de do mundo. O elemento é utilizado como combustível pela indústria nuclear.
A concentração da matriz energética brasileira nas hidrelétricas também não deixa de ser conseqüência do próprio potencial do País, maior reservatório de água doce do mundo. Mas boa parte dessa água está na Amazônia. Por lá, a geografia não ajuda muito. E há sempre o receio de impactos ambientais.
Não é por menos que as opiniões de governos em todo o mundo a respeito da energia nuclear estão dividas. Alguns países referência no assunto, como a Alemanha, abandonaram seus projetos e hoje importam energia. Com o crescimento do Partido Verde na política alemã, a energia nuclear foi jogada para escanteio. O país germânico, inclusive, foi com quem o Brasil celebrou, em 1975, acordo que previa a construção de oito usinas nucleares em Angra.
Os Estados Unidos, responsáveis por cerca de 26% da eletricidade gerada por energia nuclear no mundo, há anos não constrói uma nova usina. Mas, recentemente, flexibilizou a regulamentação do setor na tentativa de atrair investidores. Por lá, a energia nuclear exerce papel bem mais fundamental. Cerca de 20% da matriz energética norte-americana. Nada comparado, contudo, à França, onde aproximadamente 80% da energia vêm de usinas nucleares. A Cidade Luz, como é conhecida Paris, não brilharia tanto não fossem os controversos reatores.
As apostas em energia nuclear estão concentradas, principalmente, em países em desenvolvimento semelhantes ao Brasil. A China anunciou que até 2030 deve colocar em operação 30 novas usinas. A Índia está construindo quatro. Mesmo número da Rússia.
“Não tenho dúvidas de que o mundo inteiro, mais cedo ou mais tarde, estará voltando à energia nuclear”, comenta Antonio Muller, presidente da Associação Brasileira para o Desenvolvimento das Atividades Nucleares (Abdan). Segundo ele, a energia nuclear é a única que, no curto prazo, pode substituir com eficiência a gerada pelas termoelétricas tradicionais, vilãs do aquecimento global.
A tese da Abdan foi admitida, até mesmo, por um dos fundadores da Organização Não-Governamental (ONG) ambientalista Greenpeace, James Lovelock. Pelos cálculos do ecologista, a queima de combustíveis fósseis joga todo ano na atmosfera, sem qualquer controle, o equivalente a uma montanha de 1,5 km de altura e 19 km de base de dióxido de carbono, enquanto as usinas nucleares, para gerar a mesma quantidade de energia, o equivalente a 16 metros cúbicos de dejetos. Com a grande vantagem: armazenados.
Vital para o crescimento
No Brasil, o projeto nuclear ganhou força novamente quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a enxergá-lo como “vital” para o crescimento do País. Lula passou a fazer declarações públicas, defendendo a retomada do programa nuclear como forma de sinalizar aos investidores privados que o país não ficaria sem energia. Opinião compartilhada pelo especialista em Engenharia Nuclear e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Carlos Henrique Marins. “Hoje, no Brasil, temos que ter a preocupação de fornecer ao mercado a energia elétrica que sustente o crescimento econômico do país. Nesse momento, considero fundamental os investimentos nessa área”, comenta.
Em junho de 2007, na reunião da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEM), o único voto contrário à construção de Angra III veio da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O projeto constava até mesmo no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Mas as obras da usina estão hoje emperradas na Justiça, a pedido do Ministério Público Federal. Paralelamente, o processo de licenciamento ambiental corre no Ibama. A expectativa é começar as obras ainda no primeiro semestre, o que faria com que a usina estivesse disponível para entrar em operação já em 2014.
Mas o Greenpeace entrou com várias ações na Justiça questionando a legalidade de Angra III. O argumento é de que de acordo com a Constituição Federal, a construção de novas plantas nucleares depende de aprovação no Congresso Nacional, o que não foi feito pelo governo.
Destino dos dejetos preocupa
Um dos grandes desafios da indústria nuclear continua sendo encontrar uma solução definitiva para lidar com os dejetos produzidos no processo de geração de energia. Mais de 90% deles são combustíveis e podem ser reaproveitados dentro de 70 a 80 anos. Mas o restante é material altamente tóxico que pode levar até dez mil anos para se tornar inofensivo.
“A sociedade convive diariamente com uma série de rejeitos industriais. Veja o caso do que é encontrado no leite, por exemplo. Mas nenhum deles é tão controlado quanto o nuclear”, defende Leoman dos Santos, chefe de gabinete da presidência da Eletronuclear. Embora uma usina como Angra não produza tantos rejeitos, não resta dúvidas de que o lixo nuclear é mais perigoso.
Nos Estados Unidos, atualmente estuda-se a criação de um grande depósito “final”. Ao custo de U$ 30 bilhões, todos os rejeitos nucleares norte-americanos seriam armazenados debaixo de uma grande montanha localizada no estado de Nevada. No Brasil, autoridades da Eletronuclear e da Abdan confirmam que o estudo de uma espécie de depósito final também está em curso, embora em fase bem mais embrionária.
Afinal, os brasileiros já tiveram uma pequena amostra do que o lixo nuclear é capaz de fazer. Em 1987, quatro pessoas morreram em Goiânia (GO) após entrar em contato com o elemento conhecido como Césio-137, que não chega nem a ser um dos mais rejeitos mais perigosos, conhecidos como transurânicos.
(Na Hora Online, 24/02/08)